Louvor e agradecimento

O Rav Shraga Shmuel Schnitzler zt”l (Hungria, 1889 – Israel, 1979), mais conhecido como Tachaber Rav, estava no Campo de Concentração de Bergen Belsen, o verdadeiro inferno na Terra. Ele passava os dias tentando trazer tranquilidade e esperança aos outros judeus. Era o mês de Kislev de 1944 e a Festa de Chánuka se aproximava. Desde o começo do mês o Rav Shraga Shmuel tentava conseguir um pouco de óleo para acender a Chanukiá, mas sem sucesso. Desanimado, ele percebeu que Chánuka se aproximava e faltavam apenas alguns poucos dias. Ele sabia que se não acendesse a Chanukiá naquele ano, cortaria o último fio de esperança de muitos judeus do Campo de Concentração. Ele não queria desistir. Mesmo que só conseguisse acender por um dia, mesmo que fossem apenas por alguns instantes, mesmo que fosse somente um acendimento simbólico, ele queria trazer um pouco de luz para aquela terrível escuridão física e espiritual.
 
Certo dia, o Rav Shraga Shmuel estava caminhando pelo Campo de Concentração quando tropeçou em um buraco no chão e quase caiu. Ele percebeu que havia algo dentro daquele buraco, pois a terra lá dentro estava um pouco mais fofa. Após se certificar que nenhum guarda nazista o observava, ele começou a cavar. Encontrou um pequeno pote com um líquido dentro que parecia óleo. O milagre de Chánuka estava se repetindo mais uma vez. O Rav Shraga Shmuel não cabia em si de contentamento. Ele colocou mais uma vez a mão dentro do buraco e percebeu que havia um embrulho. Ao abrir, viu que eram oito pequenos copinhos de vidro e oito pavios finos de algodão. Era óbvio que algum dos prisioneiros havia escondido lá sua Chanukiá e o óleo, mas quem seria? Será que ainda estava vivo? Ele enterrou novamente seu recém-encontrado tesouro, caso o dono verdadeiro viesse buscar.
 
Nos dias seguintes ele passou o tempo inteiro procurando o dono daquela Chanukiá, mas não era de ninguém que estava no Campo de Concentração. Quando Chánuka chegou, o Rav Shraga Shmuel foi buscar a Chanukiá no buraco. Ele acendeu a vela, enquanto um grupo assistia, em total silêncio, aquela pequena luz lutando sua batalha eterna contra a escuridão. Alguns sorriram diante daquele milagre, outros derramaram lágrimas de emoção. Uma pequena fagulha de esperança se acendeu no coração de todos aqueles judeus que presenciavam um novo milagre de Chánuka. O milagre se repetiu nas oito noites de Chánuka, enquanto a pequena luz vencia a terrível escuridão nazista. Poucos meses depois, em abril de 1945, um milagre ainda maior aconteceu. Os alemães se rendiam às forças aliadas e a guerra chegava ao fim. O Rav Shraga Shmuel foi um dos poucos judeus da Europa que conseguiram sobreviver. Depois de sair de Bergen Belsen, ele voltou para a Hungria, onde se estabeleceu como líder espiritual de muitos sobreviventes do Holocausto.
 
Passaram-se muitos anos. Em uma viagem aos Estados Unidos, o Rav Shraga Shmuel foi fazer uma visita ao Rav Yoel Teitelbaum zt”l (Hungria, 1887 – Estados Unidos, 1979), mais conhecido como Satmer Rebe. Entre outras conversas, o Satmer Rebe comentou que também havia sido prisioneiro em Bergen Belsen. O Satmer Rebe contou que havia estado lá um ano antes do Rav Shraga Shmuel e que havia sido resgatado quatro dias antes de Chánuka. Ele comentou que já havia se preparado para Chánuka. Havia subornado alguns guardas para juntar óleo, potes de vidro e pavios de algodão, e havia enterrado tudo em um buraco. Comentou que o que lhe deixava muito triste era saber que ninguém havia utilizado aquela Chanukiá enterrada. Ao escutar isso, o Rav Shraga Shmuel abriu um sorriso e disse:
 
– Não se preocupe, sua Chanukiá foi usada. Ela dissipou a escuridão de centenas de judeus e ajudou-os a terem força e esperança para aguentar até o final da guerra. Foi um novo milagre de Chánuka” (História Real) 

 

Nesta semana lemos a Parashá Vaieshev (literalmente “e se estabeleceu”), que conta a história de Yossef e seus irmãos, filhos do nosso patriarca Yaacov. A Torá se alonga na descrição dos acontecimentos da vida de Yossef. Ele foi vendido como escravo pelos seus próprios irmãos e, após alguns altos e baixos, acabou se tornando o vice-rei do Egito, um dos homens mais poderosos do mundo. Ao analisarmos a vida de Yossef, percebemos que a mão de D'us estava sempre presente, dirigindo cada pequeno acontecimento da sua vida. E este conceito de enxergar a mão de D'us está conectado com a nossa próxima parada no calendário judaico. Logo após o fim deste Shabat começaremos a reviver a Festa de Chánuka. Durante oito dias acendemos as velas da Chanukiá e acrescentamos na nossa Tefilá (reza) o trecho de “Al Hanissim” e o Halel (louvores). Chánuka é a Festa na qual celebramos a incrível vitória do povo judeu sobre o poderoso exército grego e o posterior milagre do único jarro de óleo encontrado intacto, suficiente para acender a Menorá por apenas um dia, mas que durou por oito dias.
 
Porém, há uma aparente contradição nas fontes judaicas sobre qual milagre é o mais significativo para representar a Festa de Chánuka. Por um lado, se prestarmos atenção no texto do “Al Hanissim”, perceberemos que o principal foco é a vitória militar sobre os gregos, ressaltando a natureza milagrosa dos eventos através dos quais D'us permitiu que os judeus saíssem vitoriosos da guerra. Em contraste, o Talmud (Shabat 21b) coloca uma ênfase muito maior no milagre do óleo do que na vitória militar. Quando o Talmud questiona: “O que é Chánuka?”, a resposta é a descrição do milagre do óleo, com apenas uma rápida referência à batalha. Afinal, qual dos dois milagres é o mais significativo?
 
Explica o Rav Chaim Friedlander zt”l (Alemanha, 1923 – Israel, 1986) que há dois aspectos que podem definir a importância de um milagre. Um dos aspectos é a necessidade do milagre ocorrer, isto é, quanto maior a urgência de uma situação, mais importante é o milagre. Por exemplo, antes do milagre da abertura do Mar Vermelho ocorrer, o povo judeu estava cercado no deserto, com os egípcios quase os alcançando e o imenso mar diante deles. Era um milagre extremamente necessário e urgente, que dele dependia a salvação do povo inteiro. Há também um segundo aspecto que pode definir a importância de um milagre, que é a medida do quanto um milagre quebra as leis da natureza. De acordo com o judaísmo, tudo é um grande milagre, pois é a mão de D'us que faz tudo acontecer. Apesar de ser algo cotidiano, até mesmo o ato de acender um fósforo é um milagre. A natureza é um simples mecanismo que D'us criou para manter o mundo funcionando sem precisar intervir o tempo inteiro de maneira revelada. Não há nenhuma dificuldade para D'us quebrar as leis que Ele mesmo criou. Entretanto, de acordo com Sua sabedoria infinita, raramente Ele faz isto, pois milagres que envolvem a quebra das leis da natureza atingem diretamente o livre arbítrio das pessoas. Nas raras ocasiões nas quais Ele quebra as leis da natureza, há um efeito muito forte sobre as pessoas que testemunharam o milagre, pois neste caso fica impossível ignorar a Providência Divina. Quanto maior e mais evidente a quebra da natureza, maior o impacto sobre as pessoas e, portanto, maior o nível de importância do milagre.
 
Isto nos ajuda a entender que cada um dos milagres que aconteceram em Chánuka é mais importante que o outro em um dos aspectos. Em termos da necessidade, a vitória militar sobre os gregos foi muito mais importante do que o milagre do óleo. Os decretos gregos estavam colocando em risco o cumprimento da Torá e a continuidade do povo judeu e, por isso, era essencial que o pequeno exército judeu superasse os poderosos gregos. Por outro lado, os milagres que possibilitaram a vitória militar do povo judeu não aconteceram de forma aberta, não foi necessária a quebra das leis da natureza. Alguém que testemunhou o milagre da batalha poderia atribuir a vitória à destreza dos judeus nas batalhas ou à sorte. Já o milagre do óleo não foi um milagre de grande necessidade. Mesmo sem este milagre o povo judeu já estava livre do jugo grego e poderia retomar em breve os Serviços do Beit Hamikdash (Templo Sagrado). Entretanto, este milagre foi extraordinário no sentido que representou de forma clara a quebra das leis da natureza. Milagres como este têm um poderoso efeito nas pessoas que testemunharam, deixando o envolvimento de D'us no milagre quase irrefutável.
 
Com este entendimento podemos responder a diferença de abordagem entre o Talmud, que foca no milagre do óleo, e o texto do “Al Hanissim”, que enfatiza a vitória militar. De acordo com Rashi (França, 1040 – 1105), quando o Talmud questiona “O que é Chánuka?”, a pergunta na verdade é “Por causa de qual milagre nossos sábios fixaram Chánuka como uma comemoração permanente?”. Ensina o Rav Chaim Friedlander que houveram muitos eventos milagrosos na história do povo judeu e cada um deles foi transformado em uma espécie de “Yom Tov”, no qual era proibido fazer “Hespedim” (discursos de elogio aos falecidos) e jejuns. Porém, chegou um momento em que estes eventos eram tão abundantes que os rabinos decidiram cancelar todos eles, com exceção de Purim e Chánuka, pois foram milagres que tiveram impactos muito profundos no povo judeu. O questionamento do Talmud é para tentar identificar qual é o milagre excepcional que justificou Chánuka ter continuado como uma Festa permanente, enquanto os outros dias de milagres foram anulados. É por isso que a resposta do Talmud foca principalmente no milagre do óleo, pois certamente foi um milagre que, por quebrar as leis da natureza, foi muito mais marcante para o povo judeu do que o milagre da batalha.
 
Entretanto, quando é o momento do povo judeu agradecer a D'us pelos milagres de Chánuka, nosso foco principal é no milagre mais necessário, que salvou nossas vidas e permitiu o judaísmo existir até hoje. Este milagre é a vitória na batalha contra os gregos, a vitória de poucos contra muitos, dos fracos contra os fortes. Como o “Al Hanissim” é o momento de agradecimento na nossa Tefilá, a principal ênfase é dada à vitória militar, pois este é o aspecto da história de Chánuka de maior necessidade para a continuidade do povo judeu.
 
O Talmud (Shabat 21b) termina sua explicação dizendo que o período de Chánuka é conhecido como “dias de Halel VeHodaá”, que literalmente significa “dias de louvor e agradecimento”. Talvez o Talmud esteja se referindo aos dois aspectos dos milagres que aconteceram em Chánuka. O louvor é feito em relação ao milagre do óleo, pois é o milagre que mostra de forma mais completa o envolvimento de D'us com o povo judeu, enquanto o agradecimento é feito em relação ao milagre da batalha, pois nosso maior sentimento de gratidão é em relação à nossa redenção do exílio grego.
 
Uma das principais lições que podemos aprender da Festa de Chánuka é que D'us faz milagres o tempo inteiro. Algumas poucas vezes Ele faz milagres abertos, que quebram as leis da natureza, mas na grande maioria das vezes os milagres são ocultos e somente conseguimos enxergar se pararmos para prestar atenção e refletir. Mesmo quando D'us faz milagres em nossas vidas, se não internalizamos, em pouco tempo as marcas deste milagre somem. Os milagres devem nos trazer para níveis espirituais mais elevados, devem nos tirar do comodismo. D'us permitiu que os gregos dominassem os judeus pois estávamos acomodados. Somente quando o povo judeu reagiu e lutou para reestabelecer as leis da Torá é que D'us nos salvou com milagres. Em um mundo de tanta escuridão, representada pelo comodismo, pela preguiça e pela falta de espiritualidade em nossas vidas cotidianas, as luzes de Chánuka nos trazem de volta à nossa essência verdadeira.   

SHABAT SHALOM E CHÁNUKA SAMEACH

R' Efraim Birbojm

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