Expulsando a escuridão

Yossef, um pequeno garoto de nove anos, estava sentado em sua carteira no meio de uma aula. De repente, ele percebeu que se formou uma poça entre seus pés e a parte da frente da sua calça estava molhada. Yossef achou que seu coração iria parar. Como havia deixado isto acontecer? Que vergonha! Quando os meninos da classe descobrissem, nunca mais o deixariam em paz. Quando as meninas soubessem, nunca mais falariam com ele. Yossef estava desesperado e não sabia o que fazer. Ele viu então a professora se aproximando com um olhar de “descobri o que você fez”. Naqueles poucos segundos, mas que para Yossef pareciam uma eternidade, uma colega de classe chamada Rivka levantou-se da sua carteira e pegou o aquário cheio de água que havia em uma estante de livros da sala de aula. Rivka começou a caminhar com o aquário, mas tropeçou e, antes de cair no chão, derramou toda a água no colo de Yossef.
 
Yossef fingiu estar irritado, mas por dentro não cabia em si de alegria e alívio. Ao invés de ser ridicularizado, Yossef recebeu o apoio dos colegas. A professora desceu apressadamente com ele e lhe emprestou uma calça de ginástica para que ele vestisse enquanto sua calça secava. Todas as crianças se juntaram para secar sua carteira. A humilhação que ele passaria foi transferida para Rivka. Quando ela tentou ajudar a limpar a carteira de Yossef, os outros colegas disseram de forma grosseira: “Saia daqui! Já não foi suficiente o que você causou ao Yossef?”.
 
No fim do dia, enquanto estavam esperando o ônibus, Yossef caminhou até Rivka e lhe perguntou baixinho: “Você fez aquilo de propósito, não foi?”. Rivka, com um sorriso, respondeu baixinho: “Eu também molhei minha calça uma vez”.
 
Nossa grandeza é medida quando conseguimos nos preocupar com a honra dos outros da mesma maneira que nos preocupamos com a nossa própria honra. 

 

Nesta semana recomeçamos o ciclo de leitura da Torá com a Parashát Bereshit (literalmente “No princípio”), que começa descrevendo a Criação do universo, do caos até a perfeição. O ápice da Criação de D'us foi Adam Harishon, o primeiro ser humano, o propósito de tudo. D'us criou o homem do pó da terra e soprou nele uma alma de vida. Mas por que D'us justamente soprou a alma? De acordo com as fontes místicas judaicas, quando a Torá diz que D'us soprou uma alma no ser humano, nos ensina que parte Dele entrou em nós. Isto quer dizer que nossa alma é muito elevada, é parte de D'us, como ensina o mais sábio de todos os homens, Shlomo Hamelech: “A alma do ser humano é uma vela de D'us” (Mishlei 20:27). A alma foi colocada dentro do ser humano para nos iluminar e permitir nossa conexão com a espiritualidade. Porém, sabemos que D'us criou o ser humano com livre arbítrio e para isso é necessário um equilíbrio de forças. Se foi necessário D'us colocar uma “Vela Divina” dentro de nós, significa que a escuridão dentro do ser humano também é imensa.
 
Esta escuridão que existe dentro do ser humano pode ser percebida em diversas personalidades da Torá. Por exemplo, quando a cidade de Yerichó foi conquistada, muitos milagres aconteceram. Havia muralhas gigantescas protegendo a cidade, praticamente intransponíveis, mas D'us fez com que elas caíssem, possibilitando que a cidade fosse conquistada. Yoshua, o líder que sucedeu Moshé Rabeinu, entendeu a importância de aquele milagre ficar guardado para sempre. Ele proibiu que a cidade de Yerichó fosse reconstruída, para que suas ruínas servissem como fonte de inspiração de Emuná (fé) para o povo judeu. Yoshua então proferiu uma maldição: todos os filhos daquele que tentasse reconstruir a cidade de Yerichó morreriam antes do término da construção. Mas cerca de 550 anos depois um homem chamado Chiel Beit Haeli tentou reconstruir a cidade. Quando ele iniciou as fundações, seu filho primogênito morreu. Mesmo assim ele continuou a construção de maneira obstinada e foi enterrando todos os seus filhos, um após o outro. Finalmente, quando ele ergueu os portões da cidade, seu último filho morreu, exatamente como Yoshua havia avisado: “Com (a perda de) seu primogênito fará a fundação, e com (a perda de) seu filho mais novo colocará os portões” (Yoshua 6:26).
 
Porém, esta história da Torá é difícil de ser entendida. Chiel viu que estavam se cumprindo as palavras da maldição proferidas por Yoshua e que seus filhos estavam morrendo um após o outro, então por que ele não interrompeu imediatamente a construção? A maldição de Yoshua era sabida por todos, certamente a construção não foi por falta de conhecimento. Por que ele continuou construindo, de forma obstinada, mesmo enterrando seus filhos? Pois a escuridão do ser humano é tão intensa que Chiel não conseguiu conectar a morte dos seus filhos com a maldição de Yoshua. Ele preferiu acreditar que tudo era um grande acaso, e por isso continuou construindo como se nada tivesse acontecido.
 
Na nossa Parashá há outro exemplo incrível da mistura que existe dentro do ser humano de luz e escuridão. Cain, filho de Adam, trouxe para D'us uma oferenda, como está escrito: “E trouxe Cain das frutas da terra uma oferenda para D'us, e também Hevel trouxe dos primogênitos do seu rebanho” (Bereshit 4:3,4). Esta foi a primeira vez na história da humanidade em que um Korban (sacrifício) foi oferecido a D'us. Percebemos pela linguagem do versículo que Hevel aprendeu de seu irmão Cain o ato de oferecer um Korban. Mas de quem Cain aprendeu que deveria oferecer um Korban para D'us?

Explica o Ramban zt”l (Nachmânides) (Espanha, 1194 – Israel, 1270) que Cain entendeu sozinho o grande segredo dos Korbanót, algo muito profundo e sublime. Isto significa que Cain estava em um nível espiritual muito elevado, mais elevado ainda do que o nível espiritual de seu irmão Hevel. Porém, na continuação da Parashá está escrito: “E D'us aceitou Hevel e sua oferenda, mas Cain e sua oferenda Ele não aceitou” (Bereshit 4:4,5). Rashi (França, 1040 – 1105) explica que a oferenda de Cain não foi aceita pois ele trouxe das piores frutas da terra, enquanto Hevel trouxe seus melhores animais. Porém, a atitude de Cain é incompreensível, pois o mundo inteiro estava à sua disposição, ele não precisava de tantas frutas, certamente elas apodreceriam. Apesar disso, Cain foi egoísta em sua oferenda e trouxe apenas as piores frutas que encontrou. Se oferecer Korbanót não era algo obrigatório, pois D'us não havia exigido de Cain que ele oferecesse nada, e apenas através de seu intelecto e reconhecimento ele entendeu a importância de oferecer Korbanót, então por que ele trouxe apenas as piores frutas?
 
A única forma de responder esta contradição de Cain é através do entendimento de que no ser humano atuam, ao mesmo tempo, a luz e a escuridão, de forma completamente misturada, e uma delas não anula a outra. Muitas vezes agimos de forma contraditória, pois às vezes o que predomina é a “Vela Divina” que temos dentro de nós, e outras vezes o que predomina é a escuridão. O mesmo Cain, que conseguiu alcançar sozinho o segredo espiritual dos Korbanót, em um momento de muita luz, instantes depois ofereceu a D'us apenas frutas ruins, em um momento de completa escuridão.
 
O mesmo pode ser observado na continuação do versículo: “E isto incomodou demais Cain e seu semblante caiu” (Bereshit 4:5). Este desapontamento de Cain veio do seu lado de luz, pois ele reconheceu sua queda e sofreu muito por causa disso. Porém, logo depois Cain, que poderia ter aproveitado seu despertar para consertar seu erro, novamente deixou que a escuridão o dominasse. Após uma conversa com seu irmão no campo, ele se levantou e o assassinou. Sobre o que eles conversaram? Explica o Rabi Yonatan ben Uziel, grande sábio da época dos Tanaim, que Cain falou para o seu irmão: “Por que o seu Korban foi aceito por D'us e o meu não? Não há justiça e não há Juiz, não há Mundo Vindouro, não há recompensa para os Tzadikim (Justos) e não há castigo para os Reshaim (malvados)!” Quando Cain sentiu a sua queda, ao invés de se arrepender e consertar seu ato, ele preferiu negar que existia justiça no mundo, e chegou até mesmo a negar a existência de D'us ao afirmar que “não há justiça e não há Juiz”.
 
Mas como pode ser que Cain negou a existência de D'us, se momentos antes havia falado pessoalmente com Ele, como está escrito: “E D'us disse para Cain: 'Por que você está tão irritado, e por que seu semblante caiu? Não é que se você se arrepender será perdoado?'” (Bereshit 4:6,7)? Responde o Rav Chaim Shmulevitz zt”l (Lituânia, 1902 – Israel, 1979) que para se tranquilizar após seu erro e tirar de si o sentimento de culpa, Cain negou tudo e causou com que a escuridão o dominasse completamente, ao ponto de se levantar e assassinar seu próprio irmão. Após o assassinato, quando D'us perguntou a Cain onde estava seu irmão Hevel, ele respondeu: “Eu não sei. Por acaso eu sou o guardião do meu irmão?” (Bereshit 4:9). Cain pensava que poderia enganar ou ocultar algo de D'us? Certamente que não. Na verdade, Cain estava tentando enganar a si mesmo.
 
Mas se a luz não é suficiente para sozinha expulsar a escuridão, como podemos fazer para tirar de dentro de nós este lado negativo? Explica o Rav Chaim Shmulevitz que a resposta está em um comportamento interessante de Avraham Avinu em relação aos três anjos vestidos de beduínos que ele recebeu em sua casa. Assim está escrito: “E ele (Avraham) levantou seus olhos e viu, e eis que três homens estavam parados diante dele. E ele viu, e correu na direção deles” (Bereshit 18:2). Por que o versículo repete duas vezes que Avraham viu? Explicam os nossos sábios que primeiro Avraham viu que a Presença Divina estava parada sobre aqueles três homens, demonstrando que eram pessoas muito grandes. Mas isto não foi suficiente para que Avraham se levantasse e corresse na direção deles. Somente quando Avraham viu que eles também se tratavam com Cavod (honra), um respeitando o outro, ele percebeu que eram também pessoas corretas, e então correu ao encontro deles.
 
Mesmo que Avraham já tinha esclarecido que aqueles três beduínos eram pessoas muito grandes, ainda faltava esclarecer se eles eram pessoas corretas, isto é, se haviam conseguido expulsar a escuridão de dentro deles, pois quanto maior uma pessoa, maior também o seu lado de escuridão para manter o livre arbítrio. O que realmente esclarece se uma pessoa é completa em seu nível espiritual é quando ela respeita as outras pessoas, como ensinam os nossos sábios: “Quem é a pessoa honrada? Aquela que honra as criaturas” (Pirkei Avót 4:1). O Pirkei Avót ressalta que o título de “pessoa honrada” não é dado para aquele que é grande, e sim para aquele que honra e se importa com o próximo, pois assim ele demonstra que expulsou de si o lado de escuridão.
 
Devemos nos esforçar para chegar ao nível de pessoas grandes. Mas devemos nos esforçar ainda mais para chegar ao nível de pessoas corretas. Apesar de termos uma luz Divina dentro de nós, somente afastaremos nossa escuridão interior quando soubermos enxergar e apreciar que todos os outros seres humanos também têm dentro de si uma luz Divina.     

SHABAT SHALOM

R' Efraim Birbojm

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