Amor pelo material ou pelo espiritual?

Certa vez o Rav Yitzchak Meir Rotenberg zt”l (Polônia, 1799 – 1866), mais conhecido como Chidushei Harim, estava viajando em uma carruagem puxada por dois cavalos. Depois de alguns quilômetros de viagem, um dos cavalos repentinamente caiu morto no chão. O condutor da carruagem, um homem muito simples, sentiu uma terrível tristeza pela perda de seu precioso cavalo. Sem alternativa, a viagem foi retomada com apenas um cavalo. Não haviam viajado muito quando o segundo cavalo também caiu morto no chão. O dono dos cavalos ficou arrasado. Aqueles cavalos significavam muito para ele, eram seu sustento, eram sua vida. Completamente desolado, o homem sentou-se no chão, abaixou a cabeça e começou a chorar. Chorou sem parar por um longo tempo, um choro amargo e triste. Chorou tanto que acabou morrendo ali mesmo.
 
O Chidushei Harim ficou muito assustado com aquela cena. Porém, o mais impressionante aconteceu naquela noite. Ele teve um sonho muito real, no qual viu o condutor da carruagem que havia morrido. Aquele homem, uma pessoa boa e pura, havia recebido o Olam Habá (Mundo Vindouro). Mas o que mais chamou a atenção do Chidushei Harim é que o Olam Habá daquele homem era uma linda carruagem puxada por dois magníficos cavalos.
 
O Chidushei Harim acordou assustado, pois entendeu o significado daquele sonho. Nosso Olam Habá é criado pelo que damos valor no Olam Hazé (mundo material). Para aquele homem, o que ele mais dava valor na vida eram seus cavalos e sua carruagem. Portanto, foi isso o que ele recebeu para toda a eternidade. 

 

Nesta semana lemos a Parashá Ki Tavp(literalmente “Quando vierem”). A Parashá começa descrevendo a cerimônia de “Bikurim”, na qual os primeiros frutos das sete espécies da Terra de Israel eram levados ao Beit Hamikdash (Templo Sagrado) e oferecidos ao Cohen. Além disso, a pessoa que oferecia os Bikurim lia uma enorme declaração de agradecimento a D'us por todas as bondades que havia recebido, desde a época dos nossos patriarcas, passando pela saída do Egito e terminando na conquista da Terra de Israel, uma terra boa e fértil. Mas grande parte da Parashá é dedicada a uma dura advertência, na qual Moshé ressalta os devastadores castigos que poderiam recair sobre o povo judeu caso se desviassem e não seguissem os caminhos da Torá. Qual é a conexão entre a oferenda dos Bikurim e as advertências?
 
Além disso, sabemos que estas advertências da Torá não foram apenas ameaças vazias. Infelizmente muitas destas tristes profecias se cumpriram na época da destruição dos nossos dois Templos e em outras épocas da nossa história. Porém, no meio das advertências trazidas pela Parashá, a Torá faz uma interrupção com o seguinte versículo: “Pelo fato de você não ter servido a Hashem, teu D'us, com alegria e bom coração, quando havia abundância em tudo” (Devarim 28:47). O que significam estas palavras?
 
O entendimento mais simples deste versículo é que tragédias recaem sobre o povo judeu quando não cumprimos as Mitzvót com alegria, apesar de termos sido abençoados com abundância em tudo (em hebraico “Rov Kol”). D'us não cobra um Serviço Divino exemplar nos momentos de dificuldades e aperto, pois Ele sabe o quanto é difícil nos concentrarmos nas nossas Mitzvót quando nosso coração está angustiado com as dificuldades e preocupado com problemas como a falta de dinheiro para pagar as contas no final do mês. Mas que desculpa temos quando está tudo bem, quando temos tranquilidade e abundância? Por isso, nestes momentos de Brachá (benção), a cobrança é muito mais severa e a falha em servir D'us com alegria e agradecimento é considerado algo muito mais grave e sem justificativas. A Parashá junta o assunto dos Bikurim com as advertências para nos ensinar a reconhecer o que temos de bom, as Brachót que temos na vida, e utilizar este sentimento para melhorar nosso Serviço Divino cotidiano. Caso não nos esforcemos para reconhecer o que temos de bom, faremos nosso Serviço Divino sem alegria, apesar de todas as Brachót que recebemos, e isto será considerado por D'us como algo muito grave.
 
Além desta explicação mais simples, o Rav Ytzchak Luria zt”l (Israel1534 – 1572), mais conhecido com Arizal, um dos maiores Cabalistas da história do povo judeu, traz uma explicação mais profunda deste versículo. De acordo com o Arizal, o que a Torá está nos ensinando é que, mesmo se a pessoa cumpre as Mitzvót com certo grau de alegria, mas a principal alegria da sua vida não se deriva do seu Serviço Divino, e sim de uma alegria de “Rov Kol”, que se refere às outras fontes de alegria, então a pessoa está desconectada da espiritualidade. E quando alguém se desconecta da espiritualidade, a conseqüência é que tragédias recaem sobre ela. Portanto, de acordo com esta explicação, a Torá está nos ensinando que não é suficiente apenas sentir alegria no nosso Serviço Divino, mas que a alegria que sentimos com este preenchimento espiritual deve ser muito maior do que qualquer outro prazer que se deriva dos nossos esforços no mundo material. Sentir esta alegria verdadeira é uma parte muito importante do nosso Serviço Divino.
 
Explica o Rav Yehonasan Gefen que esta mensagem é especialmente importante para Rosh Hashaná, o Dia do Julgamento, que se aproxima. O principal trabalho que devemos fazer em Rosh Hashaná é reconhecer D'us como sendo o nosso Rei. Porém, na prática, como fazemos isso? Um aspecto significativo de reconhecer D'us como o nosso Rei é saber que Ele é a única Fonte de todo o prazer que verdadeiramente nos preenche e que qualquer outra fonte de prazer é vã e sem sentido. É por isso que Rosh Hashaná vem antes de Yom Kipur, pois este é um pré-requisito na nossa limpeza espiritual de Yom Kipur. Quando os desejos de uma pessoa não são direcionados para o nosso Serviço Divino, então eles são automaticamente desviados para os prazeres do mundo material, tornando-se praticamente impossível não cometer transgressões. Há muitos momentos na vida em que os desejos de uma pessoa se chocam com suas aspirações de cumprir a Vontade de D'us, causando um prejuízo ao cuidado que a pessoa tem com as Mitzvót. Portanto, qualquer arrependimento em Yom Kipur é incompleto se não mudarmos a perspectiva de como enxergamos a vida. Enquanto “dividirmos” o prazer de nos conectarmos espiritualmente a D'us com os prazeres do mundo material, nossa limpeza de Yom Kipur ainda deixará manchas que não foram apagadas.
 
Este conceito fica claro com a história que aconteceu com o Chidushei HaRim, através da qual aprendemos que uma pessoa que está presa aos seus desejos materiais, mesmo que consiga evitar as transgressões, ainda assim se deparará com consequências desagradáveis, pois a pessoa que se conecta de uma maneira muito forte com o mundo material termina perdendo sua conexão espiritual. Porém, ao refletirmos sobre esta história surge um grande questionamento. Por que o Chidushei Harim se assustou com o que viu em seu sonho? Se a carruagem e os cavalos eram coisas que aquele homem apreciava tanto, qual é o problema desta ser a sua recompensa no Olam Habá? Ele não ficou feliz com o que recebeu?
    
O Rav Yssocher Frand responde esta pergunta com uma história pessoal. Quando ele era pequeno, seu sonho era ganhar um estilingue para brincar com os meninos da rua. Porém, apesar de ter pedido aos pais diversas vezes, eles nunca concordaram em lhe dar um estilingue. Imaginem se, no dia do casamento do Rav Frand, instantes antes dele entrar na Chupá, seus pais se aproximassem com um enorme sorriso, estendessem uma linda caixa e dissessem: “Querido filho, este é um dia muito especial. Por isso queremos neste momento te presentear com um lindo estilingue, o presente que você sempre quis”. Obviamente isto não faria nenhum sentido, pois aquele estilingue valia muito quando ele era apenas uma criança, mas agora ele já estava crescido demais para isso.
 
O mesmo ocorre quando estamos no mundo material. Dedicamos a vida para adquirir prazeres materiais, como dinheiro, posses e honra, acreditando que estas coisas nos trarão preenchimento. Mas quando chegarmos ao Olam Habá, veremos que isto se compara a um estilingue nas mãos de um noivo prestes a entrar na Chupá, isto é, veremos que todos estes prazeres materiais na realidade não têm valor verdadeiro nenhum. Assim nos ensina o Rav Moshe Chaim Luzzato zt”l (Itália, 1707 – Israel, 1746), no primeiro capítulo do seu clássico livro “Messilat Yesharim” (Caminho dos Justos): “Qualquer coisa fora da proximidade de D'us que as pessoas acreditam que é algo bom, na verdade não é nada, é apenas vazio”. No Olam Habá tudo vai estar claro, as ilusões cairão e então perceberemos o quanto eram sem sentido as coisas pelas quais dedicamos nossas vidas para adquirir neste mundo material.
 
Então o ideal é fazer voto de abstinência e viver em uma caverna? Não é tão simples assim. Em diversas fontes da Torá existem aparentes contradições sobre este assunto. Por exemplo, a Torá nos ensina “Sejam pessoas sagradas” (Vayikrá 19:2). O Talmud (Yebamot 20a) explica este versículo como sendo a obrigação da pessoa se santificar abstendo-se inclusive do que é permitido. Por outro lado, o Talmud (Nedarim 10a) afirma que o Nazir, pessoa que fez um voto de se abster por algum tempo do prazer de beber vinho, é chamado de “transgressor” por ter renunciado a um dos prazeres do mundo que D'us criou. Já o Talmud Yerushalmi (Kidushin 4:12) vai mais longe ao afirmar que a pessoa terá que prestar contas por todo o prazer que poderia ter obtido comendo algo (que é permitido), mas absteve-se deste prazer. Portanto, o que é o mais importante, conquistar o nosso lado animal, transcender o mundano e revelar a supremacia do espiritual sobre o material, ou devemos encontrar a bondade de D'us nos prazeres do mundo material que Ele nos deu?
 
A resposta está na diferença entre dois níveis espirituais, a “Prishut” (se abster do mundo material) e a “Kedushá” (santificar o mundo material). Prishut significa a pessoa se abster de qualquer prazer material, vivendo apenas com o que é extremamente necessário para manter sua saúde. Kedushá significa utilizar os prazeres do mundo material, mas de uma maneira completamente controlada, visando sempre o crescimento espiritual. Neste nível, os prazeres materiais não precisam ser anulados, eles podem ser canalizados para nos dar força e energia no nosso trabalho espiritual. De acordo com o livro Messilat Yesharim, apesar dos dois níveis serem elevados, a Prishut é apenas uma preparação para alcançar a Kedushá, um nível no qual estamos muito mais próximos de D'us. A Prishut nos ensina a ter autocontrole, a saber dominar nossos desejos, mas o ideal é viver com Kedushá, canalizando os nossos prazeres da maneira correta, usando os prazeres materiais que D'us nos deu para potencializar nosso lado espiritual.
 
As “broncas” da Parashá são um forte lembrete de que não é suficiente apenas cumprir as Mitzvót, mas também devemos olhar o mundo espiritual como a força principal que impulsiona nossas vidas. Honra, poder, dinheiro e comida, desconectadas de um contexto espiritual, são fontes ilusórias de prazer. Fazer de D'us o nosso Rei significa internalizar que Ele é a única e verdadeira Fonte de alegria e prazer.

QUE SEJAMOS INSCRITOS E SELADOS NO LIVRO DA VIDA

 

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *

Related Articles

Back to top button