O valor de uma vida

Após o término da Segunda Guerra Mundial, uma carta anônima foi encontrada em um Campo de Concentração nazista, contendo a seguinte mensagem:

“Prezados professores, sou sobrevivente de um Campo de Concentração. Meus olhos viram o que nenhum homem deveria ver: câmaras de gás construídas por engenheiros formados, crianças envenenadas por médicos diplomados, recém-nascidos mortos por enfermeiras treinadas, mulheres e bebês fuzilados e queimados por graduados de colégios e universidades. Assim, tenho minhas dúvidas sobre a educação. Meu pedido é: ajudem seus alunos a se tornarem humanos. Seus esforços nunca deverão produzir monstros treinados ou psicopatas hábeis. Ler, escrever e saber aritmética só será importante se nossas crianças forem mais humanas”
 
De nada adiantam os títulos e as condecorações se a pessoa não sabe o verdadeiro valor de uma vida humana. 

Nesta semana lemos duas Parashiót juntas, Matót (literalmente “Tribos”) e Massei (literalmente “Viagens”). A Parashá Matót fala sobre a importância de manter as promessas e os juramentos, sobre o ataque do povo judeu ao povo de Midian e sobre o desejo das tribos de Reuven e Gad de se estabelecer antes do Rio Jordão, fora da Terra de Israel. Já a Parashá Massei descreve as viagens que o povo judeu fez durante os 40 anos em que permaneceu no deserto, apontando todos os lugares onde o povo acampou. Além disso, a Parashá Massei descreve as “Cidades de Refúgio”, locais para onde uma pessoa que havia assassinado de forma não intencional deveria ir e permanecer até a morte do Cohen Gadol (Sumo Sacerdote). O fato de a Torá chamar alguém que matou sem intenção de “assassino” já demonstra o quanto D'us é rigoroso com cada vida humana.
 
A Torá ressalta que as leis da Cidade de Refúgio somente se aplicavam a um assassinato acidental, como no caso da lâmina do machado de um lenhador que escapou do cabo e atingiu fatalmente outro lenhador. Porém, um assassino intencional não podia se abrigar nas Cidades de Refúgio, pois devia ser punido com a pena de morte. O final da Parashá ressalta que não devemos ser lenientes com um assassino intencional, como está escrito: “Você não deve aceitar um resgate pela vida de um assassino que merece morrer, você deve matá-lo… Você não deve corromper a terra onde você está, pois o sangue corrompe a terra” (Bamidbar 35:31,33). Estes versículos nos ensinam que não podemos ser tolerantes nem racionalizar e buscar permissões para permitir assassinatos, e aquele que intencionalmente tira uma vida não deve receber a possibilidade de “resgatar sua liberdade” através de algum tipo de pagamento. O versículo termina ressaltando que, caso um assassinato seja tolerado ou racionalizado, o sangue derramado será considerado uma abominação e contaminará a Terra de Israel, o local onde a Presença de D'us reside.
 
Porém, há algo que nos chama a atenção quando prestamos atenção na linguagem do versículo. A palavra “Iachnif”, que significa “corromper”, vem da mesma raiz de “Chanufá”, que significa “bajulação”. Qual é a conexão entre corromper e bajular? Como deixar um assassino vivo pode “bajular a terra”?
 
É interessante perceber que não é apenas a Torá que lida de forma tão rigorosa com o assassinato intencional. De acordo com as leis de todos os povos do mundo, o assassinato intencional é considerado um delito extremamente grave e é normalmente punido com a máxima rigorosidade, com penas que variam de muitos anos de detenção ou prisão perpétua até a morte do assassino. Mas será que a forma como a Torá enxerga a gravidade do assassinato é igual à forma como os povos do mundo enxergam?
 
Explica o Rav Moshe Feinstein zt”l (Lituânia, 1895 – EUA, 1986) que, apesar das aparentes semelhanças na rigorosidade com o qual os assassinos são tratados, há uma enorme e essencial diferença entre a forma como a Torá e as leis dos outros povos enxergam o assassinato intencional e sua consequente punição. Os outros povos olham o assassinato como algo que estraga e coloca em risco a continuidade do mundo, e por isso o assassino deve ser duramente punido. Os outros povos veem os duros castigos aplicados ao assassino como uma forma de erradicar do mundo aqueles que querem destruir a humanidade.
 
Porém, qual é o grande perigo de pensar desta maneira? Quando punimos de maneira muito rigorosa uma pessoa pelo fato de considerarmos que ela coloca em risco a humanidade, então corremos o risco dos limites e das definições de quem são os “perigos para a humanidade” mudarem de acordo com as vontades e as necessidades de cada sociedade. Pessoas inocentes podem ser mortas a sangue frio por assassinos que acreditam que estão salvando o mundo. Isto explica por que explodem tantas guerras, e por que surgem grupos como o Estado Islâmico, que em nome de garantir a continuidade de um mundo “correto” matam milhares de pessoas inocentes que nunca fizeram mal a ninguém. E se parece um exagero pensar assim, basta lembrar o assassinato a sangue frio de seis milhões de judeus durante o Holocausto. Quem eram os assassinos? Não eram os bárbaros, cossacos ou vikings. Eram médicos, engenheiros e policiais, pessoas que deveriam zelar pela vida, mas que escolheram assassinar homens, mulheres, crianças e bebês com requintes de crueldade.
 
Como tantos alemães participaram de assassinatos a sangue frio no Holocausto, ou simplesmente se calaram e foram coniventes com os crimes nazistas? A mídia alemã conseguiu, através de uma propaganda virulenta e mentirosa, convencer a maioria do povo alemão que os judeus eram a causa de todos os problemas do mundo. Ao transformar um judeu na “causa dos problemas”, os nazistas conseguiram convencer as pessoas que matar um judeu não era um assassinato, e sim a eliminação de um problema, e que a morte deles seria pelo bem da humanidade.
 
Outra consequência negativa desta visão equivocada é não sabermos valorizar cada instante da vida de um ser humano. Por exemplo, os momentos finais de um doente terminal, a vida de uma pessoa muito idosa e até mesmo a vida de um feto vão perdendo seu valor em uma sociedade que pensa que, em prol da continuidade da humanidade, podemos decidir quem pode viver e quem deve morrer. A eutanásia vem ganhando cada vez mais adeptos, até mesmo entre os médicos, que acreditam que não há sentido em prolongar a vida de alguém que está em estado vegetativo, inclusive pelo fato desta pessoa não produzir mais nada para a humanidade. Infelizmente a eutanásia é defendida por muitos como um ato de bondade, mas sua raiz verdadeira vem dos nazistas. Os alemães permitiram o assassinato de milhares de doentes mentais e pessoas inválidas a partir de 1939, em um projeto chamado “Aktion T4”. Deficientes físicos e mentais eram considerados partes “inúteis” da sociedade e, por isso, eram assassinados a sangue frio. O projeto somente foi possível pois recebeu intensa contribuição dos médicos alemães. Aqueles que haviam jurado, em suas formaturas, dedicar suas vidas para curar os doentes, participaram ativamente em mais de 250 mil assassinatos, apenas por que os mortos eram considerados “inúteis”. Os alemães demonstraram claramente que não sabiam dar o devido valor a uma vida humana. Passar do assassinato de inválidos e doentes mentais ao assassinato de seis milhões de judeus foi apenas um passo.
 
Já a visão da Torá em relação ao assassinato é completamente diferente em sua essência. A gravidade do assassinato não está relacionada com o conceito da continuidade da humanidade como um todo, e sim com o inestimável valor intrínseco de cada vida. A diferença na prática é que, mesmo quando uma pessoa não contribui mais nada para a humanidade, ainda assim é proibido matá-la. Cada minuto da vida de um paciente terminal é visto pela Torá com a mesma santidade que a vida da pessoa mais importante do mundo. Mesmo em relação a um doente mental ou um doente terminal com poucas horas de vida existe a gravíssima proibição de diminuir seu tempo de vida, mesmo que seja em alguns instantes. A Halachá (Lei Judaica) permite inclusive que um judeu desrespeite as leis de Shabat mesmo que seja apenas para prolongar um pouco mais a vida de um paciente terminal. A “bondade” de desligar os aparelhos de um doente é vista pela Torá com um ato bárbaro de assassinato e de desprezo pelo valor da vida humana. É por isso que a Torá trata o assassino intencional de maneira tão rigorosa, pois ele desprezou uma das coisas mais sagradas: uma vida humana.
 
Esta diferença entre a visão judaica e a visão dos outros povos é justamente o que o versículo está ressaltando. Quando alguém mata baseando-se no fato da outra pessoa estar “estragando a continuidade da humanidade”, é como se ela estivesse “bajulando a terra”, pois de acordo com seu ponto de vista equivocado, cada indivíduo é apenas secundário em relação à terra, isto é, em relação à humanidade como um todo, e a humanidade não deseja esta pessoa. Este ponto de vista faz com que o valor de uma vida não seja absoluto, e sim relativo. Portanto, matar alguém “em prol da humanidade” é como se fosse um ato de bajulação da humanidade.

O versículo vem nos ensinar que a “bajulação da terra” é um ato de corrupção da verdade, pois de acordo com a Torá a terra é secundária em relação a cada indivíduo. Cada ser humano foi criado à imagem e semelhança de D'us e, portanto, sua vida e sua existência têm valores inestimáveis. Cada ser humano é um mundo por si só, como afirma o Talmud (Sanhedrin 37a): “Quem salva uma vida é como se tivesse salvado o mundo inteiro”. Este conceito não se aplica apenas em relação a não assassinar, mas também em relação ao respeito que devemos dar a cada pessoa, pois, apesar dos nossos defeitos, temos um valor inestimável aos olhos de D'us.

SHABAT SHALOM

R' Efraim Birbojm

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