“Um rabino certa vez perguntou para um de seus mais destacados alunos:
– Você consegue frequentemente pensar sobre D'us durante o dia?
O aluno pensou por alguns instantes e respondeu:
– Rabino, eu acordo todos os dias às 5 da manhã e estudo até o horário da reza de Shacharit. Depois eu tomo um rápido café da manhã e volto para o Beit Midrash (local de estudo de Torá), onde passo toda a manhã estudando sem parar. Faço uma curta pausa para comer algo no almoço e rezar Minchá, e depois já volto correndo para o Beit Midrash para continuar meus estudos. De noite faço mais uma pequena e rápida pausa para o jantar e a reza de Arvit, e continuo estudando até o limite das minhas forças. Quando eu já não aguento mais, eu me arrasto até o meu quarto e desabo de cansaço na cama.
Então, em um tom de desabafo, ele concluiu:
– Rabino, com tantas coisas que eu faço durante o dia, com tanto estudo de Torá e Tefilót (rezas), como você ainda queria que sobrasse tempo para pensar em D'us?”
Parece piada, mas às vezes estamos tão envolvidos com a nossa “Avodat Hashem” (Serviço Divino) que acabamos perdendo de vista o propósito do que estamos fazendo: desenvolver nosso relacionamento com D'us.
A Parashá desta semana, Chukat (literalmente “Lei, decreto”), termina descrevendo a história de como o povo judeu conquistou a cidade de Cheshbon das mãos dos Emorim. Na verdade, esta cidade originalmente pertencia ao povo de Moav, até que Sichon, rei dos Emorim, conseguiu derrotar Moav e conquistar a cidade, como diz o versículo: “Por isso dizem os 'Moshlim': venham para Cheshbon, que ela possa ser construída e estabelecida como a cidade de Sichon” (Bamidbar 21:27).
Mas o que significa a linguagem “Moshlim”? A explicação mais simples é que o versículo se refere àqueles que falam “Mashalim” (poemas). De acordo com Rashi (França, 1040 – 1105), refere-se à Bilaam, o grande profeta das nações do mundo, e seu pai Beor. Sichon tentou por diversas vezes conquistar a cidade de Cheshbon, mas falhou. Então ele contratou Bilaam e Beor, que conseguiram ajudá-lo a conquistar a cidade utilizando suas maldições. Para celebrar a vitória, Bilaam e Beor declamaram um poema, anunciando que Cheshbon, que até então era a grande fortaleza de Moav, havia se tornado a capital de Sichon, e que de lá os Emorim avançariam como fogo, devorando as outras cidades de Moav.
Porém, o Talmud (Baba Batra 78b) traz outra mensagem “oculta” nas palavras deste versículo. A linguagem “Moshlim” também significa “aqueles que dominam”, e a linguagem “Cheshbon” também significa “fazer as contas”. O Talmud ensina que o versículo pode ser lido da seguinte maneira: “Por isso dizem os 'Moshlim', isto é, aqueles que dominam suas más inclinações: venham para 'Cheshbon', isto é, vamos fazer as contas do mundo, considerar as perdas que temos quando fazemos uma Mitzvá comparado com o que ganhamos com ela, e o que ganhamos com uma transgressão comparado com o que perdemos com ela”.
Nossos sábios explicam que “Cheshbon Hanefesh” é o ato de refletir sobre as nossas atitudes, e envolve a revisão de quais são os nossos objetivos na vida e a avaliação se estamos ou não vivendo de acordo com estes objetivos. As Mitzvót têm seus preços, que são os investimentos financeiros, o nosso tempo e a nossa dedicação, mas trazem recompensas eternas no Olam Habá (Mundo Vindouro). Já as transgressões têm seus benefícios momentâneos, que pode ser algum tipo de prazer material, mas o preço a ser pago é uma perda por toda a eternidade. Aquele que faz Cheshbon HaNefesh reflete sobre as perdas e ganhos, e certamente se esforçará para cumprir mais Mitzvót e evitar a todo custo as transgressões.
Mas este ensinamento do Talmud desperta um grande questionamento, pois aparentemente apenas aqueles que dominam suas más inclinações nos incentivam a fazer “Cheshbon Hanefesh”, implicando que aqueles que não dominam suas más inclinações não acreditam que a pessoa deva fazer “Cheshbon Hanefesh”. Mas será que há alguém que acha que não devemos refletir sobre os nossos atos? Que mensagem o Talmud quer nos transmitir?
Explica o Rav Moshe Chaim Luzzato zt”l (Itália, 1707 – Israel, 1746), mais conhecido como Ramchal, em sua obra “Messilat Yesharim”, que “aqueles que dominam suas más inclinações” são as pessoas que conseguiram desenvolver um entendimento mais profundo sobre as artimanhas do Yetser Hará (má inclinação), e por isso estão conscientes da necessidade de estarem sempre vigilantes contra as táticas que ele utiliza para nos fazer transgredir. Estas pessoas sabem que a ferramenta mais importante para vencer o Yetser Hará é o Cheshbon Hanefesh constante, e por isso sempre incentivam as outras pessoas a também fazerem Cheshbon HaNefesh.
Já “aqueles que não dominam suas más inclinações” são aqueles que não estão conscientes de como o Yetser Hará está constantemente nos enganando e nos encaminhando para os maus atos e para um estilo de vida indesejável. Esta pessoa vive de forma tão despreparada em relação às forças do Yetser Hará que passa a vida inteira tropeçando, como um cego que caminha na escuridão, inconsciente dos numerosos obstáculos que a aguardam pela frente. O Talmud não quer ensinar que este tipo de pessoa não concordaria sobre a importância do Cheshbon Hanefesh. Porém, por não entender como funcionam os ataques do seu Yetser Hará, ela não reconhece sozinha a necessidade de fazer Cheshbon Hanefesh, e acredita que está sempre tudo bem.
Qual é o principal fator que causa com que uma pessoa perca o entendimento de qual é o propósito verdadeiro da vida? Explica o Ramchal que as pessoas ficam tão absorvidas em suas atividades diárias que acabam não tendo a oportunidade de parar e verificar a direção que suas vidas estão tomando. Na realidade, esta é uma das principais táticas do Yetser Hará, de nos trazer cada vez mais ocupações e atividades, pois o Yetser Hará sabe que se a pessoa parasse para refletir e analisasse suas ações, então ela reconheceria as drásticas mudanças necessárias e consertaria seus atos. Então o Yetser Hará nos deixa tão ocupados que não sobra tempo livre nem mesmo para pensarmos sobre a direção das nossas vidas.
De acordo com o Rav Yehonasan Gefen, este conceito pode ser resumido em uma simples frase: “Há uma grande diferença entre uma atividade e uma realização”. Uma pessoa pode ser extremamente ocupada, mas se ela parar e examinar o que está realmente realizando de maneira significativa na vida, pode ficar decepcionada. Muitas vezes estamos ocupados, realmente ocupados. Mas o que estamos fazendo hoje em dia fará alguma diferença em longo prazo? Estamos investindo nosso tempo e nossas energias nas coisas certas?
Se o Rav Moshe Chaim Luzzato já apontava como grande problema, há mais de 300 anos, as avalanches de atividades que surgem no nosso cotidiano, o que dizer do nosso desafio atual, em um mundo moderno e digital? Estamos saturados com aparelhos e tecnologias que conseguem nos manter ocupados e distraídos 24 horas por dia. Praticamente não conseguimos manter mais nenhuma conversa sem sermos interrompidos por uma chamada de celular, por um e-mail ou por uma mensagem no whatsapp. A consequência é que não estamos nenhum instante “a sós” para avaliar a direção das nossas vidas. O Cheshbon Hanefesh regular e constante nos ajuda a lembrar do nosso objetivo verdadeiro e verificar se estamos indo no caminho correto. Com o nosso novo desafio digital, um momento ideal para o Cheshbon Hanefesh é o Shabat, um dia no qual nos desconectamos dos nossos aparatos tecnológicos e podemos nos conectar com as nossas almas.
Porém, diferente do que poderíamos pensar, esta dificuldade não é encontrada apenas entre os que estão afastados da espiritualidade. Mesmo aqueles que vivem de acordo com a Torá e cumprem Mitzvót também podem ser atacados pelo mesmo tipo de Yetser Hará, que nos impede de viver a vida de uma maneira efetiva. Como na história do estudante ocupado com seus estudos, é mais difícil encontrarmos 5 minutos para fazermos Cheshbon Hanefesh do que encontrarmos 10 horas para estudar Torá. Podemos estudar Torá e cumprir Mitzvót o dia inteiro, mas fazer isso de uma maneira completamente mecânica e sem nenhuma Kavaná (intenção). Sem reflexão, sem a conscientização do nosso objetivo de se conectar constantemente com D'us, podemos estar o dia inteiro ocupados e, ao mesmo tempo, completamente desconectados.
Tudo o que é espiritualmente difícil de ser realizado é um sinal de que neste ato há muita santidade e o Yetser Hará quer fazer de tudo para nos impedir. O Cheshbon HaNefesh constante é difícil, sempre surgirão motivos e desculpas para não fazê-lo. Porém, se nos esforçarmos e vencermos nossa má inclinação, poderemos usar esta ferramenta especial, que pode mudar nossa vida e nos ajudar a não estar apenas ocupados, mas realmente viver a vida de uma maneira plena e significativa.
SHABAT SHALOM
R' Efraim Birbojm