“Um frágil e velho senhor ficou viúvo e foi viver com seu filho, sua nora e seu neto de quatro anos. A família se reunia todos os dias para comer em uma bela mesa na sala de jantar. Porém, as mãos do velhinho tremiam e a vista dele já estava um pouco embaçada, o que tornava difícil o simples ato de comer. A todo instante a comida caía da sua colher, sujando todo o chão, e o leite derramava na toalha. A sujeira começou a irritar muito seu filho e sua nora:
– Nós precisamos fazer algo em relação ao meu pai – disse o filho, irritado – Já estou cheio do tanto leite derramado, de ouvir os ruídos que ele faz quando come e de toda a comida que ele derruba no chão.
O marido e a esposa decidiram preparar uma mesa pequena no canto da área de serviço. Lá o velhinho comia sozinho, abandonado, enquanto o resto da família continuava comendo na sala de jantar. Além disso, depois do velhinho ter quebrado um ou dois pratos, a comida dele passou a ser servida em uma tigela de madeira. Quando eles olhavam de relance na direção do velhinho, às vezes percebiam uma lágrima nos olhos dele. Ainda assim, as únicas palavras que o casal dirigia a ele eram duras broncas quando a colher caía com comida ou ele derramava o leite. O neto de quatro anos assistia tudo em silêncio. Uma noite, antes do jantar, o pai notou que a criança estava brincando no chão com sucatas de madeira. Perguntou docemente ao filho o que ele estava fazendo, e com um enorme sorriso o menino respondeu:
– Eu estou fabricando duas pequenas tigelas de madeira, para você e a mamãe poderem comer sua comida quando estiverem velhinhos.
As palavras do menino penetraram como uma faca afiada no coração dos pais. Lágrimas rolaram dos rostos deles. Não era preciso falar nada, eles sabiam o que precisava ser feito. Naquela noite o marido pegou a mão do pai e, com suavidade, conduziu-o de volta para a mesa da família. E daquele dia em diante, nem o marido nem a esposa pareciam se preocupar quando uma colher caia no chão, o leite era derramado ou quando a toalha da mesa tinha se sujado”.
A Torá nos ordena tratar os idosos com muito respeito. Acima de tudo é um reconhecimento pelo que eles já contribuíram, e certamente continuam contribuindo, com enorme sabedoria, na construção de um mundo melhor.
A Parashá desta semana, Chayei Sarah, fala sobre o final das vidas de Avraham e Sara. Avraham viveu muitos anos, como está escrito: “Avraham stava velho, com idade avançada, e D'us abençoou Avraham com tudo” (Bereshit 24:1). Apesar de muitos problemas e desafios que Avraham enfrentou durante sua longa vida, ele sempre soube olhar as situações de maneira positiva. E, acima de tudo, ele confiava plenamente em D'us.
Em relação a este versículo, o Talmud (Sanhedrin 107b) traz um incrível ensinamento. Até a época de Avraham não havia o conceito de envelhecimento. Como Ytzchak era muito parecido com Avraham, quando as pessoas iam falar com Avraham, acabavam falando por engano com Ytzchak, e quando iam falar com Ytzchak acabavam falando por engano com Avraham. Avraham então rezou e pediu para que D'us incluísse o envelhecimento no ciclo de vida do ser humano, para evitar este tipo de confusão, e D'us concordou com o pedido de Avraham.
Os comentaristas da Torá perguntam qual é o ensinamento presente nesta passagem do Talmud, pois desperta um grande questionamento. O Rav Ishaia MiTrani (Itália, 1180 – 1250), mais conhecido como Tossafot Rid, argumenta que existem diversas fontes que comprovam que o envelhecimento já existia até mesmo antes do nascimento de Ytzchak, tais como os versículo “Avraham e Sara estavam velhos” (Bereshit 18:11) e “Eu realmente terei um filho, agora que eu estou velha?” (Bereshit 18:13). Poderíamos explicar que os versículos se referem a um envelhecimento que não era fisicamente perceptível, e o pedido de Avraham foi justamente para que o envelhecimento se tornasse algo visivelmente reconhecido pelas pessoas, evitando confusões.
Porém, esta explicação apresenta algumas dificuldades. Em primeiro lugar, após o erro de Adam Harishon, a existência física do ser humano tornou-se finita e seu corpo foi fadado a um estado de decadência física. Por que D'us decretaria a morte do ser humano e não faria com que a proximidade do seu fim fosse visivelmente perceptível? Além disso, há versículos que comprovam que o ser humano já apresentava sinais de envelhecimento em seu corpo mesmo antes do nascimento de Ytzchak. Sara, quando escutou os anjos anunciando que ela ficaria grávida aos 90 anos, comentou: “Depois de estar tão enrugada, eu voltarei a ter uma pele delicada?” (Bereshit 18:12). Deste versículo fica claro que já havia sinais físicos de envelhecimento antes mesmo do pedido de Avraham. Então o que ele exatamente pediu para D'us em sua reza? E o que D'us concedeu à humanidade ao concordar com o pedido de Avraham?
Responde o Rav Yohanan Zweig que talvez o pedido de Avraham realmente não estava relacionado com o estado físico das pessoas. O que chamou a atenção de Avraham foi que as pessoas falavam com ele, um ancião com mais de 100 anos, exatamente da mesma maneira como falavam com seu filho Ytzchak, um rapaz ainda extremamente jovem. Isto significa que as pessoas não tinham nenhuma apreciação pela sabedoria dos idosos e não demonstravam o devido respeito a eles. Avraham queria que os idosos fossem respeitados e honrados pelos seus conhecimentos e por suas experiências de vida. Foi este tipo de apreciação pelos idosos que Avraham pediu para que D'us incutisse na humanidade, e D'us atendeu o seu pedido, como confirmam as palavras finais do versículo: “D'us abençoou Avraham com tudo”.
Infelizmente, se olharmos o comportamento da nossa sociedade, perceberemos que esta apreciação dos idosos novamente está ausente. De acordo com a Cultura Ocidental, a velhice é uma deficiência do ser humano. A juventude é vista como referência nas mais diversas áreas: nos negócios, na medicina, nas tecnologias e até mesmo nos governos. As novas gerações insistem em “inovar e aprender com seus próprios erros”, ao invés de construir a partir da experiência adquirida pelos mais velhos. Aos 50 anos uma pessoa é considerada alguém “no limite” de sua produtividade, e já começa a receber os primeiros avisos de que seu cargo estaria melhor preenchido por alguém 20 anos mais jovem. Em muitas empresas multinacionais a aposentadoria é obrigatória aos 60 anos, para que alguém de “sangue novo” possa assumir os novos desafios.
Portanto, nossa sociedade acaba forçando com que os últimos anos de vida de uma pessoa sejam de inatividade e decadência. Os mais velhos são tratados como se fossem inúteis, como se fossem um peso para a sociedade. A mensagem transmitida aos idosos é que o ideal seria se estivessem confinados em um asilo. Depois de décadas de conquistas e realizações, seus conhecimentos e talentos se tornam repentinamente sem valor. Depois de muitos anos de importantes contribuições, os idosos se tornam peças indesejáveis no jogo da vida.
Não podemos escapar da realidade de que a natureza do corpo humano aos 70 anos não é a mesma do que aos 30 anos. Mas o valor de uma pessoa é definido por suas proezas físicas? Se a força física de alguém diminuiu, mas suas capacidades intelectuais e sua sabedoria aumentaram, isto é considerado uma melhoria ou um declínio? Se o rendimento de uma pessoa diminui em quantidade, mas melhorou em qualidade, então seu valor aumentou ou diminuiu? A atitude da Cultura Ocidental em relação aos idosos reflete bem a noção dos seus valores: a ênfase está apenas na força física, enquanto a força intelectual é completamente desprezada.
Um jovem de 20 anos pode dançar por horas sem se cansar, enquanto um senhor de 75 anos provavelmente se cansará em poucos minutos. Mas o ser humano não foi criado para dançar. Ele foi criado para transformar a vida na Terra em algo mais puro, mais brilhante e mais sagrado do que era antes do seu aparecimento. Deste ponto de vista, a maturidade espiritual dos anciãos certamente compensa, e muito, sua diminuição física.
Esta é a visão da Torá. A velhice é uma virtude, é uma Brachá (benção). Em toda a Torá o conceito de “ancião” é sinônimo de sabedoria. O Talmud (Kidushin 33a) nos ordena respeitar os anciãos, independente de sua escolaridade, pois os vários desafios e experiências pelos quais eles passaram na vida resultam em uma sabedoria que até mesmo os mais talentosos entre os jovens não podem alcançar. Um dos segredos da imortalidade do judaísmo é justamente o respeito aos idosos. Pois uma sociedade que não sabe respeitar o passado é certamente uma sociedade que não terá futuro.
SHABAT SHALOM
Rav Efraim Birbojm