“Mesmo durante o rigoroso inverno europeu, o Rav Isroel Meir HaCohen (Bielorússia, 1838 – Polônia, 1933), mais conhecido como Chafetz Chaim, ia sempre à Mikve da cidade de Radin, onde morava, na véspera do Shabat. Certa vez ele encontrou a pessoa que fazia a manutenção da Mikve e perguntou se a água já havia sido aquecida. O homem respondeu que sim, pois já havia vertido quase metade do conteúdo da caldeira de água quente na Mikve. O Chafetz Chaim então se preparou para mergulhar, mas quando encostou o pé na água, percebeu que estava muito gelada.
O Chafetz Chaim não entendeu o que estava acontecendo, pois certamente o homem não havia mentido para ele, mas a água estava gelada como se nenhuma quantidade de água quente tivesse sido acrescentada. Quando checou a temperatura da água da caldeira, entendeu qual era o problema: a água estava morna, quase fria. O problema não estava na Mikve, estava na caldeira, que não estava funcionando direito e não conseguia esquentar a água. Por isso, mesmo que a água da caldeira havia sido realmente jogada na Mikve, não havia contribuído para esquentá-la.
Durante o Shabat, o Chafetz Chaim refletiu sobre o ocorrido e aprendeu uma grande lição. Mesmo a água fervendo de uma caldeira consegue apenas deixar a água da Mikve morna. E se a própria água da caldeira estiver morna, ela não contribui para esquentar a Mikve, ao contrário, esta água que acaba se esfriando”.
O Chafetz Chaim utilizava este conceito para ensinar o perigo de entrarmos em contato com pessoas em um nível espiritual mais baixo, pois corremos o grande risco de acabarmos sendo “esfriados”.
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Na Parashá desta semana, Vaierá, a Torá continua nos descrevendo os difíceis testes pelos quais Avraham Avinu passou durante sua vida. Um dos grandes testes foi ter que expulsar de casa seu próprio filho. Durante muitos anos Avraham não conseguia ter filhos. Sara, vendo que não conseguia dar filhos para Avraham, sugeriu que ele se casasse com sua escrava, Hagar, e que tivesse filhos com ela, pois assim poderia ao menos participar da educação desta criança. Avraham escutou o pedido de sua esposa e se casou com Hagar, tendo com ela um filho, Ishmael. Somente alguns anos depois D'us teve misericórdia de Sara e também deu a ela um filho, Itzchak.
Porém, certa vez Sara viu algo que não a agradou: “E viu Sara o filho que Hagar, a egípcia, havia dado à luz para Avraham, zombando” (Bereshit 21:9). Rashi (França, 1040 – 1105), comentarista da Torá, explica que a linguagem “messachek” (zombando) também é utilizada em outros lugares da Torá para se referir à idolatria, relações ilícitas e assassinato. Isto quer dizer que Sara viu Ishmael fazendo atos graves, que demonstravam que ele havia se corrompido e se desviado completamente. Sara então exigiu que Avraham expulsasse de casa sua esposa Hagar e seu filho Ishmael, para que Ishmael não se tornasse uma má influência para Itzchak. A ideia de expulsar seu filho desagradou a Avraham, mas D'us apareceu para ele e confirmou que isto era o correto a se fazer. Apesar da dificuldade do teste, Avraham conseguiu dominar suas emoções e cumprir a vontade de D'us.
Mas deste acontecimento surge uma grande pergunta: Avraham não percebeu que seu filho Ishmael havia se desviado do caminho? Ele não sabia que a convivência colocava em risco a educação e o futuro de Itzchak, seu herdeiro espiritual? Então por que a ideia de expulsar Ishmael lhe desagradou?
Respondem os nossos sábios que Avraham tinha plena consciência dos maus atos de Ishmael e os riscos que seus comportamentos inadequados causariam na educação de Itzchak. Porém, Avraham acreditava que o contrário poderia acontecer, isto é, que o bom comportamento de Itzchak poderia ajudar a endireitar Ishmael. Sara também conhecia os dois lados, mas ponderou e chegou à conclusão de que era muito mais provável que Itzchak fosse mal influenciado do que Ishmael fosse bem influenciado, e por isso decidiu expulsá-lo. D'us concordou com a ponderação de Sara.
Dizem nossos sábios que “Maassê Avót, Siman Lebanim” (os atos dos nossos antepassados são um sinal para nós). Explica o Chafetz Chaim que deste episódio aprendemos uma importante lição de como nos relacionar com pessoas espiritualmente mais baixas, que se comportam de uma maneira inadequada. A Torá está nos ensinando que devemos nos afastar delas, pois esta convivência certamente nos fará mal. Muitas vezes pensamos que não seremos afetados pelos maus atos dos outros, achamos que somos fortes e não seremos influenciados por comportamentos inadequados. Mas a verdade é que tudo o que vemos à nossa volta nos influencia, para o bem ou para o mal. E a repetição constante de más influências pode nos transformar em pessoas completamente diferentes. O problema é que, quando estamos dentro da influência, acabamos não percebemos a nossa própria transformação.
Este ensinamento é ressaltado em outro episódio da Parashá, quando D'us decidiu destruir as cidades de Sdóm (Sodoma) e Amorá (Gomocha), cidades que atingiram limites absurdos de maldade. E assim está descrita a destruição: “D'us fez chover enxofre e fogo sobre Sdóm e Amorá… Ele virou estas cidades de cabeça para baixo” (Bereshit 19:24,25). O que significa que D'us virou as cidades de cabeça para baixo?
Ensinam nossos sábios: “Raban Shimon bem Gamliel disse: o mundo se sustenta por três coisas: a justiça, a verdade e a paz” (Pirkei Avót 1:18). Apesar de a justiça ser um dos pilares que sustentam o mundo inteiro, Sdóm e Amorá literalmente inverteram a justiça e os caminhos corretos. O Talmud (Sanhedrin 109a) nos ensina que eles legislaram leis injustas, que prejudicavam os bons e protegiam os malvados. Por exemplo, havia Em Sdóm uma grave proibição de receber convidados ou ajudar os pobres, e a violação destas leis era punida de forma severa. Pelo fato de eles terem literalmente invertido a justiça, medida por medida D'us fez com que suas cidades, que se encontravam no topo de uma enorme rocha, virassem de cabeça para baixo e fossem destruídas.
Porém, por que as pessoas de Sdom e Amorá eram tão ruins? De onde vinha tanta maldade? O Talmud (Sanhedrin 109 a) nos dá uma incrível explicação, dizendo que tudo começou com uma grande Brachá (benção) de D'us, quando Ele deu aos habitantes de Sdóm e Amorá uma terra extremamente fértil, cheia de ouro e safiras. Os habitantes não eram pessoas ruins, mas começaram a pensar em maneiras de fazer com que pessoas de fora não viessem para se aproveitar das riquezas de lá. Eles fizeram leis abomináveis e contrataram juízes malvados que julgariam de acordo com estas leis e castigariam de forma dura todo aquele que as transgredissem, somente para afastaram possíveis novos moradores que quisessem vir para extrair o que a terra tinha de bom.
Portanto, em um primeiro momento estas leis não eram motivadas pela maldade, e sim como uma forma de proteger suas riquezas. Mas o que era apenas algo externo, com o passar do tempo começou a influenciar para o mal toda a população de Sdóm e Amorá. As pessoas acabaram se tornado realmente malvadas e cruéis. Quando Lót, o sobrinho de Avraham, recebeu convidados em sua casa, a cidade inteira veio tirar satisfação, desde os mais jovens até os mais velhos. A população estava inflamada, querendo “justiça”. Pessoas que eram corretas e bondosas haviam se tornado agentes do mal, prontas a destruir e cometer as piores crueldades imagináveis. Rashi ressalta que não havia na cidade inteira nem mesmo um único habitante que era justo e correto. Esta é a força das influências internas sobre o nosso comportamento.
De Sdóm e Amorá aprendemos o quanto o costume nos transforma em pessoas diferentes. Não podemos pensar que estamos imunes às influências externas, pois somos criaturas sociais e absorvemos muito do ambiente à nossa volta. Algo abominável, quando repetido muitas vezes, vai sendo internalizado e se transformando em natureza, a ponto de acabarmos intelectualmente defendendo tal ideia após algum tempo. Ninguém está imune de sofrer influências externas, e por isso devemos escolher bem quem são as pessoas à nossa volta e quais são os valores da sociedade na qual escolhemos viver, como ensinam nossos sábios: “Nitai Haarbeli disse: Se afaste de um mau vizinho e não se associe a um homem perverso” (Pirkei Avót 1:7). Foi por isso que D'us concordou com o pedido de Sara. Este era o correto a se fazer, pois certamente Itzchak, que era uma criança pura e correta, aprenderia com os maus atos de Ishmael e se desviaria do caminho. Ninguém está a salvo das más influências.
Precisamos tomar cuidado, pois o “mau vizinho” descrito pelos nossos sábios não são apenas pessoas de carne e osso, mas tudo o que permitimos que entre em nossas casas. Quando abrimos nosso lar às ideias “estranhas” ao judaísmo, acabamos nos acostumando mesmo com coisas que há pouco tempo achávamos abomináveis. Infelizmente vivemos em uma sociedade cujos valores são cada vez mais corrompidos, e se não tivermos uma constante referência do que é o correto, podemos facilmente cair. O perigo não é apenas o quanto as más influências afetam nossos filhos, mas também o quanto elas afetam a cada um de nós. Certamente os habitantes de Sdóm e Amorá achavam que eles estavam corretos. Eles caiam pouco a pouco, mas não percebiam. Como a água morna jogada na piscina gelada, eles iam perdendo um pouco mais de “calor” a cada dia. Isto pode acontecer a cada um de nós, mas acontece em especial com aqueles que acham que estão acima de qualquer influência.