Bondades equilibradas

O pequeno Shmuel, aos dez anos de idade, já era sinônimo de terror na escola. Mesmo tendo crescido em uma casa com Torá e Mitzvót, ele já estava se desviado dos caminhos corretos e se envolvendo em atividades altamente indesejáveis. Castigos e duras broncas não tinham nenhum efeito sobre ele, era uma criança completamente sem controle. Os pais e professores já tinham desistido, parecia que não havia mais o que fazer.
 
Shmuel foi então encaminhado para uma organização especializada em “crianças-problema”. Foi decidido que ele precisava desenvolver uma conexão próxima com uma família calorosa e carinhosa, algo que obviamente faltava em sua própria casa e havia causado todo este descontrole. Fizeram uma busca minuciosa e finalmente encontraram uma família apropriada. Era uma família modelo, famosa por sua “Messirut Nefesh” (entrega completa) em prol da comunidade. Eram pessoas com um coração enorme, estavam sempre de portas abertas, envolvidos em todos os tipos de projetos sociais, nunca negavam qualquer tipo de ajuda. Certamente dariam o amor que o pequeno Shmuel precisava.

Para o choque de todos da organização, eles descobriram que Shmuel, esta criança tão carente, era um membro daquela família! Os pais de Shmuel estavam tão preocupados ​​em ajudar e cuidar dos outros que acabaram negligenciando o cuidado de quem eles eram mais responsáveis. (História Real).

Nesta semana lemos a Parashat Shemini (literalmente “Oitavo”) que, entre outros assuntos, se alonga nas leis de Kashrut, nos ensinando o que é permitido e o que é proibido para o nosso consumo alimentar. As leis de Kashrut fazem parte dos “Chukim”, as leis da Torá cuja lógica está acima da nossa capacidade de entendimento. O verdadeiro motivo de não consumirmos certos alimentos é o mal que eles fazem para a nossa alma. Apesar disso, há algumas razões lógicas em relação à Kashrut que estão ao nosso alcance intelectual. Por exemplo, um dos “sinais” dos animais Kasher é que eles devem ser ruminantes. Isto nos ensina que, para sermos pessoas “kesherim”, precisamos desenvolver a importante característica de sermos “ruminantes” em nossas decisões, isto é, sempre refletirmos muito e nunca sermos precipitados. Devemos sempre “mastigar” bem o que escutamos e nunca “engolir” nada sem questionar e refletir.
 
Além disso, percebemos que os animais que são permitidos ao nosso consumo geralmente têm uma natureza mais pacífica e não atacam ou se alimentam de outros animais. Isto não é uma coincidência. O que consumimos tem uma parcela material, mas também tem uma parcela espiritual. Enquanto a parte material é absorvida pelo nosso corpo e utilizada como energia, a parcela espiritual é absorvida pela nossa alma. Por isso, animais com características negativas não devem ser ingeridos, pois nos influenciam negativamente.
 
Isto também pode ser percebido em relação aos pássaros. Não há nenhum “sinal” de Kashrut que nos possibilita identificar quais pássaros podem ser consumidos, a Torá apenas lista os 20 pássaros que são proibidos para o nosso consumo. Se prestarmos atenção aos pássaros desta lista, perceberemos que há um ponto em comum entre eles. Os pássaros proibidos são aqueles que têm má índole ou hábitos condenáveis. Por exemplo, parte da lista são aves de rapina, que atacam com violência outros pássaros ou animais. Outra parte da lista são animais que comem carniça, isto é, que ficam aguardando ansiosamente um animal morrer para comer a sua carne.
 
Porém, há um pássaro da lista chamado “Chassidá”, traduzido como “cegonha”. O Talmud (Chulin 63a) explica que o nome vem da palavra “Chessed”, que significa “bondade”, pois a cegonha faz bondade com seus amigos e distribui sua comida entre eles. Isto levanta um enorme questionamento, pois se a cegonha tem um traço de caráter tão positivo, por que é considerada um animal Não-Kasher?
 
Explica o Ruzhiner Rebe zt”l (Império Russo,1796 – Áustria, 1850) que a resposta está em um detalhe da explicação do Talmud. Quando o Talmud diz que a cegonha faz bondade, ressalta que esta bondade é feita “com seus amigos”, isto é, apenas com as aves da mesma espécie, mas ela não faz nenhuma forma de bondade para as outras espécies de pássaros. Portanto, esta não é uma forma de bondade compatível com a visão da Torá, de que devemos fazer bondade a todos, de forma irrestrita, e não somente aos nossos amigos e aqueles que são próximos. O nosso modelo de bondade na Torá é Avraham Avinu, cuja tenda tinha 4 aberturas, para que sua casa estivesse de portas abertas a todos os viajantes, não importando de que direção viessem. Ajudar somente os amigos não é, de acordo com a Torá, uma forma “kasher” de fazer bondades.
 
Entretanto, esta ideia parece ser contraditória com outro conceito ensinado pela Torá. O Talmud (Baba Metzia 62a) discute um caso no qual duas pessoas estão no deserto e somente uma delas traz um cantil de água. A quantidade de água é suficiente para que apenas uma delas sobreviva e consiga voltar à civilização. O que é o correto a ser feito? O dono do cantil deve fazer uma enorme bondade e dar a água ao seu companheiro, morrendo ele próprio de sede? Eles devem dividir a água e ambos morrerem de sede? O dono do cantil deve beber sozinho, deixando que seu companheiro morra de sede? De acordo com a opinião de Rabi Akiva, e assim foi definida a Halachá (Lei Judaica), o dono do cantil deve beber sozinho, mesmo que a consequência seja a morte de seu companheiro. O motivo trazido é que “Chaiecha Kodmim” (sua própria vida e suas necessidades vêm antes da vida e das necessidades dos outros),
 
Este conceito de “Chaiecha Kodmin” é bem abrangente e se aplica também a outras áreas da nossa vida. Por exemplo, em relação às leis de Tzedaká (caridade) e outros atos de Chessed (bondade), este conceito define que há uma ordem de prioridades, sendo que nossa obrigação é ajudar em primeiro lugar as pessoas mais próximas. Aparentemente este comportamento não difere muito do comportamento da cegonha, que ajuda as aves da mesma espécie em detrimento de outras espécies. Então por que é negativo nos alimentarmos da cegonha?
 
Explica o Rav Yehonasan Gefen que há duas importantes diferenças entre o conceito de “Chaiecha Kodmin” e o comportamento da cegonha. Em primeiro lugar, a cegonha faz bondade somente com sua própria espécie, excluindo completamente qualquer outra criatura. Em contraste, o conceito de “Chaiecha Kodmin” não exclui ajudar todas as pessoas, apenas ajusta a bondade através de uma ordem de prioridades, não nos isentando da obrigação de ajudar também aqueles que não são tão próximos. Além disso, a aplicação do conceito de “Chaiecha Kodmin” é limitado às situações nas quais duas pessoas têm necessidades idênticas. Por exemplo, quando duas pessoas precisam de pão, damos preferência para aquela que está mais próxima. Entretanto, se as necessidades não são iguais, de maneira que as necessidades da pessoa mais distante são maiores, então temos a obrigação de prover em primeiro lugar para a pessoa distante, pois ela é mais carente. Por exemplo, se uma pessoa próxima tem pão e necessita carne, enquanto uma pessoa mais distante não tem nem mesmo pão, somos obrigados a fornecer pão à pessoa distante antes de dar carne à pessoa mais próxima.
 
Há uma segunda e fundamental diferença entre a bondade da cegonha e a perspectiva da Torá em relação ao Chessed: a motivação que está por trás de dar prioridade aos mais próximos. A raiz da bondade limitada praticada pela cegonha é o fato dela se preocupar apenas com sua própria espécie, mas não se importar com os demais animais. A cegonha é essencialmente um pássaro egoísta, cujo “eu” se estende apenas à sua própria espécie, mas não inclui nenhum outro animal. Em contraste, a Mitzvá de Chessed nos obriga a nos preocuparmos igualmente com todos os judeus, sem nenhum tipo de distinção, seja ele alguém próximo ou distante, seja um amigo ou um completo desconhecido.
 
A motivação para o conceito de “Chaiecha Kodmin” é o senso de responsabilidade, não o egoísmo. A razão pela qual nós devemos prover às nossas famílias antes dos outros é a responsabilidade que recai sobre nós em relação ao bem-estar deles. O conceito de “Chaiecha Kodmim” não é um privilégio pelo qual temos permissão de cuidar de nós mesmos e de nossas famílias antes de cuidar dos outros por sermos mais importantes. Pelo contrário, é uma obrigação, temos o dever e a responsabilidade de cuidar de nós mesmos e de nossas famílias antes dos outros. Negligenciar este dever não é diferente do que descumprir qualquer outra Mitzvá da Torá.
 
Não é uma tarefa fácil decidir quanto tempo e esforço devem ser dedicados aos vários grupos de pessoas que compõem a nossa vida, que começa com os familiares mais próximos, passando aos familiares mais distantes, amigos, membros da comunidade e completos estranhos. Cada pessoa tem diferentes níveis de responsabilidade em cada área, baseado em circunstâncias particulares da vida de cada um. Porém, apesar de não haver uma “receita”, o que devemos sempre buscar é o equilíbrio, isto é, por um lado prover o suporte necessário, em termos financeiros, físicos e emocionais, para nossos familiares mais próximos, em relação a quem recai sobre nós a maior responsabilidade direta, mas sem esquecer de cumprir nossas obrigações com a comunidade mais ampla e abrangente.
 
Enfatizar demais uma área pode causar terríveis conseqüências em outras áreas. Fazer bondades com pessoas distantes pode até ser uma incrível ferramenta de educação para os nossos filhos, uma forma de desenvolver neles a generosidade, mas não pode ser à custa da atenção e do carinho que as crianças precisam receber de seus pais. Se a pessoa atingir o equilíbrio correto, certamente poderá cumprir, com sucesso, todas as suas responsabilidades, nos seus mais diversos círculos sociais, conforme a Torá exige de nós.

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