A fragilidade do ser humano

“Todos os anos o rabino chefe de New York, o Rav Yaacov Yossef zt”l (Lituânia, 1840 – EUA, 1902), dava uma importante “Drashá” (discurso) de Shabat Teshuvá (Shabat entre Rosh Hashaná e Yom Kipur). Ele era um grande “Talmid Chacham” (erudito no estudo da Torá) e podia falar por horas, citando dezenas de ensinamentos do Talmud, sem abrir um único livro ou anotação. Suas palavras entravam no coração, e por isso este discurso anual era um grande evento, fazendo com que os lugares da sinagoga fossem muito disputados.
 
Mas um triste incidente ocorreu quando o Rav Yaacov Yossef ainda era jovem. Com pouco mais de 55 anos, ele teve um derrame. Ninguém sabia se ele se recuperaria a tempo de dar a Drashá. Algum tempo antes de Rosh Hashaná os organizadores confirmaram, para a alegria de todos, que a Drashá aconteceria. O Rav Yaacov Yossef, apesar de debilitado, tentaria reunir forças para fazer seu discurso. Os organizadores avisaram que haveria duas diferenças em relação aos anos anteriores: o Rav falaria sentado, por sua dificuldade de permanecer de pé por muito tempo, e utilizaria livros para fazer suas citações, ao invés de falar tudo de cor.
 
No dia da Drashá, a sinagoga estava completamente lotada, não havia nem mesmo um único lugar vazio. O Rav Yaacov Yossef começou a Drashá com as seguintes palavras: “Diz o Talmud”, mas logo depois ele parou, ficando em silêncio total. Recomeçou com as mesmas palavras: “Diz o Talmud”, mas novamente permaneceu um longo tempo em silêncio. Finalmente ele começou pela terceira vez seu discurso com as palavras “Diz o Talmud”, e mais uma vez estas palavras foram seguidas por um terrível silêncio. Após alguns instantes, o Rav Yaacov Yossef começou a chorar. Quando se acalmou, olhou fixamente para o público e disse:
 
– Até a Drashá do ano passado eu sabia todo o Talmud de cor, mas apesar de ter preparado a Drashá deste ano, eu não consigo lembrar nem mesmo qual era o assunto! Despertem, vejam qual é o fim do ser humano. Eu sou um exemplo vivo. Aprendam com o que aconteceu comigo e se arrependam enquanto ainda há tempo de consertar seus atos”.
 
Esta Drashá, de apenas 9 palavras, talvez tenha sido a melhor Drashá da vida do Rav Yaacov Yossef. Certamente naquele dia as pessoas saíram da sinagoga sensibilizadas, muito mais conscientes da fragilidade da vida humana e de que tudo, absolutamente tudo, está nas mãos de D'us.
 


Nesta semana lemos a Parashá Nitzavim que, entre outros assuntos, fala sobre o processo de Teshuvá, no qual a pessoa, através de reflexões, se arrepende dos seus maus atos e decide mudar de atitude na vida, como está escrito: “E você voltará para D'us, e escutará Sua voz… com todo seu coração e toda a sua alma” (Devarim 30:2). E no Domingo de noite (13 de setembro) começa Rosh Hashaná, o Dia do Julgamento, uma das datas mais importantes do calendário judaico, um dia muito conectado com a Teshuvá e com o nosso compromisso de mudanças para o próximo ano. Será que estamos nos preparando bem? Entendemos a importância deste dia?
 
O Talmud (Rosh Hashaná 16b) nos ensina algo impressionante sobre como se comportar no dia de Rosh Hashaná: “Todo ano que é pobre no seu começo se torna rico no seu final”. Explica Rashi (França, 1040 – 1105) que a expressão “pobre no começo” se refere a quando os judeus se fazem pobres em Rosh Hashaná em súplicas e rezas, isto é, quando sentem que não tem nada na vida, como uma pessoa completamente destituída, e derramam seu coração diante de D'us, implorando e rezando. Quando uma pessoa se comporta desta maneira, o Talmud nos garante que seu ano terminará rico, com muitas Brachót.
 
Para entender um pouco melhor as palavras do Talmud, podemos utilizar como ilustração a forma como os empresários fazem os cálculos de orçamento de suas empresas. A maioria dos empresários, quando faz seus planejamentos orçamentários para o próximo ano, utiliza como base o que aconteceu nos anos anteriores. Os gestores apenas discutem as prováveis modificações no orçamento do ano anterior, mas as partes que se manterão nem mesmo são discutidas, pois já são consideradas como “pré-aprovadas”. Porém, há outra maneira de fazer o planejamento orçamentário, chamado de “Zero Based Budgeting” (Orçamento Base Zero), quando nada do orçamento do ano anterior é levado em consideração. Neste sistema, cada item do orçamento precisa ser novamente aprovado, e não apenas as alterações em relação ao ano anterior. É como se a empresa estivesse começando novamente do zero.
 
É exatamente esta a diferença de como nos sentimos e como deveríamos nos sentir em Rosh Hashaná. Sentimos como se tudo o que temos já está garantindo, somente precisamos pedir para D'us coisas a mais. Mas o Talmud está nos ensinando que precisamos começar o nosso novo ano com o sistema de “Zero Based Budgeting”, isto é, como se não tivéssemos nada do que tínhamos no ano anterior, como se fossemos completamente pobres e destituídos, começando do zero, sem nenhuma garantia de nada.
 
Mas isto é verdade? Como podemos nos sentir assim, como pobres destituídos, se temos os nossos bens, nosso dinheiro, nossos talentos, nossos amigos e nossa família? Explica o Rav Yssocher Frand que temos um conceito equivocado de como funciona o mundo espiritual e os decretos de D'us. Achamos que apenas pelo fato de termos dinheiro e saúde hoje, certamente teremos o mesmo no dia seguinte. Mas a verdade é que não existe nenhuma garantia. Todos conhecem pessoas milionárias que, do dia para a noite, perderam tudo. Todos têm algum conhecido que, sem nenhum aviso prévio, perdeu completamente a saúde ao descobrir que tinha uma doença incurável. Nossos sábios ressaltam que isto se aplica em especial ao novo ano, quando D'us decide tudo o que vai acontecer no próximo ano. Não há garantia de nada, e o que foi no ano passado não é garantido que será de novo no próximo ano.
 
Por que existe esta diferença de percepção da realidade? Pois pensamos que as coisas que temos na vida são fruto do nosso esforço e dos nossos méritos. Mas a verdade é que tudo é uma grande bondade de D'us. Ele nos dá vida, Ele nos dá nossos dinheiro e bens, Ele nos dá nossa saúde. A pessoa que pensa que está saudável está apenas se iludindo, pois a vida do ser humano está sempre apenas por um fio. É por isso que D'us nos criou tão frágeis, para que possamos perceber que nossa vida está sempre nas mãos Dele.
 
Esta verdadeira percepção da realidade foi um dos últimos ensinamentos da vida de Moshé. A Parashá lida na semana que vem, Vaielech, começa com as seguintes palavras: “E foi Moshé (Vaielech Moshé) e disse: Hoje eu completo 120 anos. Já não posso mais sair e entrar. E D'us me disse: 'Não passará este (rio) Jordão' ” (Devarim 31:2). Há um Midrash (parte da Torá Oral) que nos ensina que a linguagem “Vaielech” sempre indica uma advertência. Mas se procurarmos neste ou nos próximos versículos, aparentemente não encontraremos nenhuma advertência ou bronca. Então será que a regra ensinada pelo Midrash se aplica no nosso caso?
 
A resposta está nas seguintes palavras: “Hoje eu completo 120 anos. Já não posso mais sair e entrar. E D'us me disse: 'Não passará este Jordão' “. De acordo com os nossos sábios, estas palavras contêm uma terrível advertência de Moshé ao povo judeu, que ele deixou para o fim de sua vida justamente para ensinar ao povo de forma marcante. Moshé estava dizendo ao povo que ele, aquele mesmo homem que há pouco tempo atrás havia subido até o céu como uma águia, que havia permanecido 40 dias e 40 noites sem comer e sem dormir para receber a Torá, no mesmo nível dos anjos, agora não podia nem mesmo atravessar um simples rio como as outras pessoas. Por que? “E D'us me disse: 'Não passará este Jordão' “. Quando D'us decreta algo, não existe nenhuma garantia de nada. Ontem foi ontem, hoje é um novo dia. O mesmo Moshé que subiu aos céus não podia mais atravessar nem mesmo um simples rio, pois esta era a vontade de D'us.
 
Quem percebe isso, quem sabe que estamos sempre na corda bamba, age de forma diferente.  Quem sabe que tudo está em jogo em Rosh Hashaná, o dia do nosso julgamento, age diferente. Todos nós já passamos por momentos de ansiedade, principalmente quando parentes próximos estiveram sob risco de vida. Quando uma pessoa está na sala de espera de um hospital, aguardando as notícias vindas da sala cirúrgica, ela sente de verdade o que é ser um pobre destituído, o que é estar completamente nas mãos de D'us. E neste momento a pessoa age de maneira diferente. Seu coração se conecta com D'us, e ao invés de atos vãos e vazios, a pessoa se ocupa com rezas e Tehilim (Salmos). Esta é a forma de despertar para Rosh Hashaná: lembrar como a condição humana é frágil, lembrar que tudo está nas mãos de D'us, e não há garantia de nada. Todo nosso ano depende dos momentos de conexão com D'us em Rosh Hashaná, pois tudo estará sendo decretado neste dia.
 
Assim podemos entrar no clima de Rosh Hashaná, entendendo o que está realmente em jogo neste dia. Precisamos lembrar que nossa vida em Rosh Hashaná é julgada de acordo com o “Zero Based Budgeting”, isto é, não há garantia de nada. Se entrarmos em Rosh Hashaná nos sentindo como pobres, sem nada garantido na vida, abrindo nosso coração para D'us, teremos muito mais chances de ter bons decretos e um ano com muitas Brachót. Como ensina o Talmud, que nosso ano comece pobre, para terminar muito rico.

“SHETIKATEV VETECHATEM BESSEFER CHAIM TOVIM” (QUE SEJAMOS INSCRITOS E SELADOS NO LIVRO DA VIDA) 

SHABAT SHALOM E SHANÁ TOVÁ         
 
Rav Efraim Birbojm

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