A Língua exagera

“David ligou para o seu dentista, querendo agendar uma consulta. Com a voz tensa, ele disse:

– Doutor, é urgente. Por favor, tente me encaixar ainda hoje. Eu estou com uma cavidade enorme no meu dente. Estou muito preocupado, pois tenho medo de perder o dente. Pelo tamanho da cavidade, o dente já deve estar inteiro podre!

O dentista, preocupado, conseguiu reagendar suas consultas e atendê-lo no mesmo dia. Mas quando David sentou-se na cadeira do dentista e mostrou-lhe o dente que incomodava, o dentista pareceu um pouco confuso. Ele falou para David:

– Meu querido, acho que você se enganou, isso não parece muito ser uma cavidade. Não é nada grave, o dente está ótimo, muito saudável. Há apenas um pequeno desnível no dente, mas podemos cuidar disso com um pouco de resina.

– Sério? – perguntou David, sem acreditar – Mas não pode ser que não tem quase nada. Quando eu passei a língua no dente, parecia que havia uma cavidade enorme!

O dentista sorriu e falou:

– Isso sempre acontece, David. Não podemos decidir as coisas de acordo com o que a língua nos informa. Afinal, é natural que a língua dê sempre uma exagerada, não?”

Precisamos tomar muito cuidado com a forma que utilizamos nossa fala. Nossa língua, sem controle, pode causar muita destruição. Pois, na maioria das vezes, ela exagera muito…

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A Parashá desta semana, Tazria, descreve uma terrível doença espiritual chamada Tzaráat, que se manifestava através de manchas nas paredes da casa, nas roupas e na pele. Porém, apesar da manifestação física da doença, a identificação não era feita por um médico, e sim por um Cohen (sacerdote), como está escrito: “E o Cohen deve declará-lo contaminado; é Tzaráat” (Vayikrá 13:8).

Qual era a causa desta doença espiritual? O Talmud (Arachin 15b) explica que a palavra “Metzorá”, (termo que descreve a pessoa contaminada com Tzaráat) é uma contração das palavras “Motsi” e “Rá”, que significam “aquele que espalha a difamação”. O Talmud está ressaltando que a principal falha que levava ao castigo de Tzaráat era o Lashon Hará, isto é, revelar algo negativo sobre uma pessoa de forma a causar danos físicos, financeiros ou psicológicos.

Infelizmente, por total falta de conhecimento, muitos pensam que a transgressão de Lashon Hará somente ocorre quando alguém inventa mentiras para caluniar o próximo. Mas o rabino Israel Meir HaCohen (Polônia, 1838 – 1933), mais conhecido como Chafetz Chaim, dedicou a vida para difundir as leis de cuidado com a fala e nos ensina que a transgressão de Lashon Hará ocorre justamente quando alguém denigre o próximo com informações verdadeiras, isto é, quando revela algum erro realmente cometido ou algum defeito que verdadeiramente existe no outro. Caso a pessoa misture fatos mentirosos, a transgressão se torna ainda mais grave e é chamada de “Motsei Shem Rá”.

Mas destas informações surgem duas dúvidas. Em primeiro lugar, sabemos que todos os castigos aplicados por D’us são “Midá Kenegued Midá” (medida por medida), isto é, o castigo é aplicado exatamente da maneira através da qual a pessoa cometeu o erro. Por exemplo, uma pessoa que falou palavrões ou palavras obcenas pode ser punido queimando sua língua com o café quente. Desta maneira, a língua que transgrediu falando o que não deveria é “castigada” com a dor da queimadura. D’us utiliza esta característica de “Midá Kenegued Midá” justamente para nos levar à reflexão e nos ajudar a entender, observando o castigo recebido, qual foi o nosso erro. Isto é uma das maiores bondades de D’us, pois assim Ele nos dá a possibilidade de consertarmos nossos atos e chegarmos à perfeição. Porém, como vemos a característica de “Midá Kenegued Midá” no castigo de Tzaráat? Qual a relação entre as manchas que aparecem no corpo e o erro de revelar atos errados ou más características de outras pessoas?

Além disso, em várias ocasiões diferentes a Torá preza muito pela verdade e abomina a mentira. Por isso é fácil entender que o “Motsei Shem Rá” é algo abominável, pois é uma mentira, uma distorção da realidade. Mas por que a transgressão de Lashon Hará também é considerada algo tão grave pela Torá, se trata-se apenas de revelar algo que é verdade? Por que a Torá parece ir contra a revelação da verdade?

Explica o Rav Yohanan Zweig que atualmente a mídia se tornou um excelente modelo de que nem sempre dizer a verdade reflete a realidade de uma situação. Por exemplo, quando um canal de televisão quer acusar o exército de Israel de maltratar os palestinos, eles colocam no ar um clipe de 15 segundos no qual um soldado israelense, armado e bem preparado, golpeia um aparentemente desarmado e inofensivo cidadão palestino. O vídeo está realmente mostrando algo real, as imagens não foram criadas em estúdio. Porém, ao editar o vídeo e cortar certas partes, não mostrando o incidente inteiro e deixando de fora os primeiros minutos da filmagem, que mostravam aquele mesmo palestino “inocente” atirando as pedras que atingiram e cegaram uma criança israelense, eles infelizmente distorceram a realidade do evento ocorrido. Isto quer dizer que um clipe de 15 segundos na televisão pode mostrar um incidente que realmente aconteceu. Porém, se este clipe for a única conexão de uma pessoa com o incidente, ela pode sair com uma visão completamente distorcida da realidade. Este é um ótimo exemplo de que é possível dizer um monte de mentiras dizendo apenas verdade.

Esta é a mesma distorção que ocorre através do Lashon Hará. Apesar de a pessoa estar dizendo apenas a verdade em seus comentários sobre seu companheiro, denegrindo-o aos olhos dos outros, isto não representa a realidade. A pessoas que fala Lashon Hará normalmente se acostuma a focar apenas na parte negativa dos outros. Apesar dos erros de um individuo representarem apenas uma pequena parte da sua verdadeira essência, aquele que faz Lashon Hará cria nos outros a percepção que esta é a realidade inteira da pessoa. Da mesma forma que o clipe tendencioso de 15 segundos consegue distorcer completamente a realidade de uma situação aos olhos daqueles que não sabem realmente o que está acontecendo, assim também é o Lashon Hará, pois apesar de só falar a verdade, a pessoa está distorcendo completamente a realidade. Quando alguém escuta o Lashon Hará, ele imediatamente associa a pessoa à má característica ressaltada, e certamente ignora os outros traços positivos dela.

No Lashon Hakodesh (língua com a qual D’us criou o mundo) podemos perceber também este conceito. A palavra “Verdade” é “Emet” (letras Alef, Mem e Taf), enquanto a palavra “Mentira” é “Sheker” (letras Shin, Kuf e Reish). As três letras de “Sheker” são letras que estão juntas uma da outra no alfabeto, enquanto a palavra Emet é composta pela primeira letra do alfabeto, a letra do meio e a última letra. Isto quer dizer que mentira é você olhar algo de uma maneira limitada e achar que entendeu tudo, enquanto verdade é entender apenas após enxergar o quadro completo.

Com este conceito é possível entender por que o Tzaráat é uma punição “Midá Kenegued Midá” do Lashon Hará. Mesmo que a pessoa encontrasse apenas uma pequena mancha em seu corpo, isto já era suficiente para contaminar seu corpo todo. A transgressão daquele que fez Lashon Hará se reflete, portanto, na sua punição. Da mesma forma que ele distorceu a verdade e criou uma falsa realidade ao amplificar um pequeno defeito, a ponto disto representar a pessoa inteira, da mesma maneira também o Tzaráat, que poderia ser apenas uma pequena mancha, acaba contaminando e representando a pessoa inteira.

D’us nos deu um grande presente, que é o dom da fala. Com ela podemos nos comunicar, expressar nossos pensamentos e sentimentos, ensinar e ajudar ao próximo. Mas, infelizmente, a fala muitas vezes acaba sendo utilizada de uma maneira negativa. Sem o devido cuidado, com a fala podemos rotular as pessoas, destruir potenciais e causar muito sofrimento. Pois, como afirmou o dentista, a língua exagera muito.
 

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