“Marcelo voltava do trabalho dirigindo em um dia de trânsito pesado. De repente, ele viu no retrovisor que um carro, dirigido por um homem de meia idade, vinha apressadamente “costurando” no trânsito. Ele vinha forçando a passagem, acendendo e pagando as luzes. Quando aquele carro chegou ao lado do carro de Marcelo, forçou a passagem querendo mudar de pista e entrar na frente dele. Marcelo ficou muito irritado com aquele homem, pois enquanto todos aguardavam pacientemente o trânsito, aquele malandro queria levar vantagem. Marcelo teve vontade de acelerar, impedindo a passagem do outro carro, e dizer para aquele folgado algumas verdades. Quase seus instintos conseguiram dominá-lo, mas ele respirou fundo e conseguiu se controlar. Diminuiu a marcha e deixou o outro carro passar e seguir seu caminho.
Ao chegar em casa, ainda um pouco estressado, Marcelo recebeu a assustadora notícia que seu filho de três anos havia sofrido um grave acidente e estava no hospital. Imediatamente seguiu para lá, desesperado. Quando chegou, sua esposa veio ao seu encontro e o tranquilizou:
– Fique calmo, querido. Graças a D'us agora está tudo bem. O médico chegou a tempo para socorrer nosso filho e dar os primeiros socorros. Ele já está fora de perigo.
Marcelo, mais tranquilo, pediu que sua esposa o levasse até o médico para agradecê-lo. Qual não foi sua surpresa quando percebeu que o médico era aquele homem cujo carro havia forçado passagem quando ele voltava para casa…”
Por trás de uma atitude, sempre existe uma história, um motivo que leva as pessoas a agirem de determinada maneira. Se você quer acertar no julgamento dos outros, procure ver além das aparências.
A Parashá desta semana, Ki Teitzei (literalmente “Quando vocês saírem”), traz diversas leis relacionadas aos cuidados nos relacionamentos interpessoais. Entre os vários assuntos, há um extremamente importante para refletirmos em Elul, o último mês do ano, a época de preparação final para o nosso julgamento de Rosh Hashaná: a transgressão de Lashon Hará, que significa utilizar a nossa fala para denegrir e diminuir a honra dos outros, causando sofrimento e prejuízos financeiros, espirituais ou psicológicos.
Cometemos diversos erros durante o ano, nas mais diferentes áreas. Mas infelizmente um dos erros no qual mais tropeçamos é o mau uso da nossa fala. Pelo fato de falarmos o tempo inteiro, o descuido nesta área pode ter consequências graves, como está escrito: “Lembre-se o que Hashem, teu D'us, fez para Miriam no caminho, quando vocês saíram do Egito” (Devarim 24:9). Rashi (França, 1040 – 1105) explica que este versículo é uma advertência em relação ao Lashon Hará. A Torá está nos avisando que, da mesma forma que Miriam falou negativamente de seu irmão Moshé e foi castigada com Tzaráat, uma doença espiritual que se manifestava através de manchas na pele, também aquele que fala Lashon Hará é castigado com Tzaráat. Desde a destruição do nosso Beit Hamikdash (Templo Sagrado) a Tzaráat já não causa mais manchas físicas no nosso corpo, mas certamente continua manchando a nossa alma.
Este versículo, que nos comanda a lembrar das consequências do Lashon Hará de Miriam, é considerado pelo Rav Isroel Meir HaCohen zt”l (Bieloríssia, 1838 – Polônia, 1933), mais conhecido como Chafetz Chaim, como uma das 613 Mitzvót da Torá. Mas qual é a conexão entre a transgressão de Lashon Hará e o castigo de Tzaráat? Sabemos que D'us é Misericordioso e, por isso, Ele faz com que o castigo que vem como consequência de uma transgressão já traga um componente de conserto deste erro. Como a Tzaráat vem consertar o Lashon Hará? E por que a Torá fez questão de conectar a Tzaráat com o erro de Miriam, ao invés de explicar de uma maneira genérica que todo aquele que fala Lashon Hará fica com Tzaráat?
Antes de tudo precisamos entender exatamente qual foi o erro de Miriam, uma Tzadeket (mulher justa e correta) que havia atingido o nível de profecia. O Rambam (Maimônides) (Espanha, 1135 – Egito, 1204) nos ensina que Miriam era a irmã mais velha de Moshé e havia ajudado a criá-lo desde pequeno. Ela arriscou sua própria vida para acompanhá-lo no rio Nilo quando Moshé foi colocado em uma cestinha à deriva. Em seu Lashon Hará, Miriam não falou nada de mal sobre Moshé, apenas se equivocou ao igualá-lo aos outros profetas. Além disso, Moshé não se ofendeu nem guardou rancor. Apesar de tudo isso, Miriam foi castigada com Tzaráat.
Das palavras do Rambam aprendemos que a transgressão de Miriam foi consequência de um erro em suas considerações. Se não fosse este pequeno erro de cálculo, suas palavras teriam sido corretas, pois ela teve boas intenções e certamente foi cuidadosa em verificar se havia reunido todas as condições necessárias para que fosse permitido falar algo que pode denegrir outra pessoa. Portanto, aprendemos de Miriam que o castigo da Tzaráat está associado ao julgamento equivocado. Se pararmos para refletir, perceberemos que na maioria das vezes que tropeçamos em Lashon Hará é por termos sido precipitados e não julgarmos a pessoa da maneira correta. A causa é o desleixo no cumprimento da Mitzvá de “com justiça julgue seu companheiro” (Vayikrá 19:15).
Mas esta Mitzvá não é fácil de ser entendida. O Rabeinu Yona zt”l (Espanha, século 12) explica esta Mitzvá da seguinte maneira: sempre que vemos uma pessoa fazendo algo que parece errado, e existe a possibilidade de julgar seu ato de uma maneira meritória, somos obrigados a julgá-la positivamente. Ele acrescenta que, se a pessoa que está sendo analisada é alguém com temor a D'us, nossa obrigação vai além e devemos julgá-la de forma positiva mesmo quando as evidências e o entendimento racional estejam pendendo para o lado da culpa. De acordo com a explicação do Rabeinu Yona parece que esta Mitzvá não é lógica e racional, pois não parece muito lógico julgar uma pessoa de forma positiva quando tudo parece apontar para o outro lado. Quando uma situação se inclina para o lado da culpa, julgar a pessoa positivamente é, aparentemente, fazer o contrário do que é correto e justo. Então por que a Torá nos comanda a “com justiça julgará seu companheiro”, e não a “com bondade julgará seu companheiro”?
Ensina o livro “Lekach Tov” que, na verdade, quando julgamos alguém que tem um temor a D'us elevado e sincero, inclinar o julgamento para o lado positivo é certamente o correto e o justo, mesmo quando as evidências parecem pender para o outro lado. Para alguém com temor a D'us as transgressões são algo tão abominável, e o estrago causado por elas é tão marcante, que a pessoa se afasta com todas as suas forças de qualquer tipo de erro. Por isso, por mais ilógico que possa parecer uma justificativa para um ato desta pessoa, certamente é mais lógico do que imaginar que alguém neste nível de temor a D'us tenha cometido o erro que aparenta. Então por que erramos tanto no julgamento das pessoas? Pois somos tão pequenos e estamos tão distantes do temor a D'us verdadeiro que não conseguimos nem entender o quanto pessoas com temor a D'us se afastam das transgressões. Portanto, quando achamos difícil julgar alguém para o lado positivo, muitas vezes o erro está em nós mesmos, na nossa falta de entendimento do que é o temor a D'us.
Além disso, outro motivo pelo qual tropeçamos muito em não julgar os outros de forma favorável é o fato de enxergarmos o mundo de acordo com os pensamentos do nosso próprio coração. Aquele que honra as criaturas comprova que ele também é uma pessoa honrada, enquanto aquele que despreza as criaturas justamente as despreza por projetar nos outros seus próprios erros, como afirmam nossos sábios: “Todo aquele que vê defeitos em seu companheiro, na verdade está vendo seus próprios defeitos”. Por isso, quanto mais elevada for a pessoa que está fazendo o julgamento, suas considerações vão emanar do lado do bem e será mais fácil para ela julgar o próximo positivamente. Por outro lado, quanto mais baixa for a pessoa, suas considerações vão emanar do lado negativo e ela estará mais propensa a julgar tudo de maneira negativa. Portanto, no final das contas, a Mitzvá de “com justiça julgue seu companheiro” é uma forma de autoavaliação e aquele que sempre julgar tudo para o mal deve parar e procurar o mal que há dentro de si.
Mas como a Tzaráat ajudava o transgressor a corrigir seu erro de julgamento? A pessoa com Tzaráat passava por um terrível sofrimento. Era desprezada pela sociedade e precisava se afastar de sua esposa e de seus filhos. Ao invés de amigos, sua companhia eram as moscas que ficavam em volta das feridas de sua pele. Esta pessoa ficava sozinha, sentada fora do acampamento, impura e abandonada. A pessoa contaminada com Tzaráat era uma pessoa cujo mundo material havia sido completamente destruído, a ponto de nossos sábios definirem que, naquele estado, ela era como uma pessoa morta. Como seria possível encorajar uma pessoa nestas condições? Como alguém poderia trazer consolo para ela? Somente ressaltando seu lado espiritual. Apesar de seu lado material ter sido destruído, sabemos que o mundo material é limitado, é apenas um corredor diante do mundo espiritual. Mesmo que, neste momento, seu corpo material havia se tornado algo desprezível, a pessoa precisava focar que o corpo é apenas uma vestimenta temporária para sua alma eterna.
Ensinam os nossos sábios que tudo o que nos puxa para o lado positivo é fundamentado na vontade da alma, enquanto tudo o que nos puxa para o lado negativo é fundamentado na vontade do corpo. Na prática, a Tzaráat destruía o mundo material da pessoa que falou Lashon Hará, obrigando-a a se agarrar em seu lado espiritual e voltar a colocar sua alma como o principal e seu corpo como o secundário. Isto fazia com que, daquele momento em diante, a pessoa fizesse suas considerações de uma maneira mais espiritual e, portanto, pendendo para o lado positivo. A pessoa passava a julgar os outros de uma maneira favorável, interpretando com seu lado bom e nobre as ações, omissões, pensamentos e falas de seu companheiro. Este era o conserto que a Tzaráat trazia para o erro de Lashon Hará, que é principalmente consequência de julgarmos as pessoas de maneira negativa.
Elul é o momento de fazermos uma autoavaliação sincera. Julgamos os outros sempre de maneira precipitada, sem termos nas mãos todas as informações. Não nos esforçamos para procurar justificativas positivas para os aparentes maus atos das pessoas. Não chegamos nem mesmo a cogitar que “talvez não foi exatamente assim” ou “talvez o erro foi meu”. De acordo com o conceito que vimos, isto é sinal de que o mal não está nos outros, e sim dentro de nós mesmos. Por isso, é importante sermos sinceros antes do nosso julgamento de Rosh Hashaná, pois podemos passar a vida enganando os outros e a nós mesmos, mas não podemos enganar a D'us.
SHABAT SHALOM
R' Efraim Birbojm