Andando com D’us

“Certa vez um policial antissemita viu dois judeus religiosos em uma moto. Ele quis dar uma multa naqueles judeus, mas precisava de algum motivo para isso. Montou em sua moto e começou a acompanhá-los, sabendo que mais cedo ou mais tarde eles fariam alguma manobra proibida. Provavelmente parariam a moto sobre a faixa de pedestres, ultrapassariam de maneira perigosa ou fariam uma conversão sem acionar o pisca alerta. Era só questão de tempo para poder multá-los.
 
Porém, o tempo começou a passar e o policial não os via cometendo absolutamente nenhuma falha. Eles respeitavam todas as leis de trânsito, acionavam o pisca alerta antes de qualquer conversão, aguardavam pacientemente o sinal verde e não andavam entre os carros. Depois de mais de meia hora perseguindo os dois judeus, o policial não aguentou mais. Muito irritado, ele mandou-os descerem da moto e disse:
 
– Vou falar a verdade para vocês. Estou há meia hora acompanhando a moto de vocês, de olho em tudo o que vocês fazem, e estou impressionado. Vocês não fizeram absolutamente nada errado! Como isto é possível?
 
– É fácil para nós evitarmos fazer coisas erradas – respondeu um dos judeus – pois sabemos que D'us está nos observando o tempo inteiro. Quando andamos de moto, sabemos que D'us está conosco na moto.
 
O policial, ao escutar isso, deu um sorriso maldoso, tirou do bolso seu talão de multas e disse:
 
– 3 na moto? Estão multados…”
 
Apesar da piada, o verdadeiro segredo de não cometermos transgressões é vivermos com a certeza de que a presença de D'us está sempre
conosco, em tudo o que fazemos, mesmo nos pequenos detalhes do cotidiano.


 

Nesta semana lemos a Parashá Shoftim (literalmente “Juízes”), que começa nos ensinando sobre a importância de estabelecermos um sistema de justiça, com juízes para fazerem os julgamentos e policiais para fazerem a lei se cumprir na prática, como está escrito: “Vocês devem estabelecer para vocês juízes e policiais nas cidades que D'us está dando para vocês” (Devarim 16:18).
 
De acordo com algumas opiniões, a divisão das Parashiót semanais da forma que nós seguimos atualmente ocorreu na época do Exílio da Babilônia, após a destruição do Primeiro Beit HaMikdash (Templo Sagrado). Porém, na própria Torá já há um sistema de divisão de assuntos, também chamado de “Parashiót”. Em um Sefer Torá temos as “Parashiót Petuchót” (literalmente “trechos abertos”) e as “Parashiót Stumót” (literalmente “trechos fechados”). Explicando de maneira superficial, no Sefer Torá uma “Parashá Petuchá” começa como uma nova linha em relação ao assunto anterior e define um novo capítulo, enquanto uma “Parashá Stumá”, apesar de separada por alguns espaços em branco, começa na mesma linha do assunto anterior e define apenas um novo parágrafo.
 
O primeiro assunto trazido na nossa Parashá, que fala sobre o estabelecimento de juízes, é uma “Parashá Stumá”, isto é, não define um novo capítulo em relação ao assunto anterior, apenas um novo parágrafo. A Parashá da semana passada, Reê, terminou com o ensinamento dos “Shalosh Regalim”, as três grandes Festividades (Pessach, Shavuót e Sucót) nas quais cada judeu tinha a obrigação de ir até Jerusalém para oferecer um Korban (sacrifício) no Beit Hamikdash. O último dos Shalosh Regalim mencionados na Parashá é a Festa de Sucót, na qual dormimos por uma semana em cabanas ao ar livre. Se a Torá não fez nenhuma “quebra” entre estes dois assuntos, significa que há alguma conexão forte entre eles. Qual é a mensagem que a Torá está nos transmitindo?
 
Existem leis que definem como deveriam ser estabelecidos os Tribunais de Justiça em cada cidade da Terra de Israel. De acordo com o Rambam (Maimônides) (Espanha, 1135 – Egito, 1204), cada cidade deveria ter um “Pequeno Sanhedrin”, composto por 23 juízes. Além disso, cada juiz precisava ter dois suplentes, chegando a um total de 69 juízes para compor o Tribunal de Justiça local. E a obrigação do estabelecimento de um “Pequeno Sanhedrin” se aplicava a qualquer cidade com mais de 120 habitantes.
 
Porém, este ensinamento do Rambam desperta um grande questionamento. Qual é a lógica de estabelecer um Tribunal de Justiça composto por 69 juízes em uma cidade de 120 habitantes? Quantos casos judiciais este Tribunal teria que julgar para justificar este número tão grande de juízes em uma cidade com tão poucas pessoas? E se até pequenas cidades de 120 habitantes tinham um Tribunal de Justiça, então o número de Tribunais em toda a Terra de Israel chegava a milhares. Qual é a necessidade de tantos Tribunais de Justiça e de tantos juízes?
 
Explica o Rav Yohanan Zweig que a função de um Tribunal de Justiça não é apenas aplicar a lei e fazer a justiça prevalecer. Além de obviamente manter a ordem e a justiça, o juiz deve ser um canal para as palavras de D'us. Ele tem a obrigação de criar uma sociedade na qual presença de D'us pode ser constantemente sentida. Mas por que isto é tão importante? O papel do juiz não deveria ser apenas causar o temor nas pessoas de que o descumprimento da lei tem como consequência a aplicação de castigos pelo Tribunal?
 
A experiência demonstra que um sistema de justiça construído apenas com base na premissa de que as pessoas não cometerão transgressões por medo das consequências normalmente não tem sucesso. Por exemplo, quando a pessoa percebe que há brechas na lei, ela se sente estimulada a transgredir. Quanto menores forem os riscos de ser pego e punido e maiores forem os ganhos com a transgressão, maior será o número de pessoas que optará por transgredir a lei. É justamente isto que está ocorrendo na atual crise política brasileira. A aplicação da lei no Brasil é extremamente falha e os políticos sabem que, enquanto a chance de realmente serem punidos é muito pequena, a possibilidade de desvio de dinheiro envolve milhões de reais. Isto causa com que a grande maioria dos políticos decida que vale a pena ser desonesto e desrespeitar a lei. Mesmo aqueles que são pegos pela justiça, principalmente através das delações, acabam sendo soltos pouco tempo depois ou pegam penas muito pequenas, desproporcionais aos milhões desviados. Em outras palavras, há muita corrupção no Brasil pois, na maioria dos casos, os crimes não são punidos pela justiça, fazendo com que o crime “valha a pena”.
 
Porém, isto não acontece apenas no Brasil. Em qualquer lugar do mundo, em épocas de desastres naturais, guerras ou apagões, aumenta muito o número de delitos, como saques a lojas e casos de violência. Por que? Quando a cidade está um caos, as pessoas sabem que a polícia não dará conta de prender todos os transgressores e, por isto, se sentem estimuladas a cometer maus atos. É o que nos ensinam os nossos sábios: “Se não fosse pelo temor (das autoridades), a pessoa engoliria seu companheiro vivo” (Pirkei Avót 3:2).
 
Então qual é a solução para desenvolvermos uma sociedade justa e equilibrada? Enquanto no Brasil as manchetes dos jornais estão sempre recheadas de notícias sobre roubos e desvios, na cidade de Bnei Brak, em Israel, frutas são oferecidas na rua sem vendedor e livros são vendidos nas sinagogas sem ninguém vigiando. Há apenas uma caixinha onde o comprador deixa o dinheiro da compra, sem nenhum tipo de controle. E o mais incrível é que a cidade de Bnei Brak não tem nenhuma delegacia de polícia. Qual é o segredo? A Torá nos ensina que há apenas um sistema efetivo para impedir que as pessoas cometam transgressões: quando entendemos que há algo intrinsecamente errado em violar a lei, independente de qualquer futura punição aplicada pela Justiça ou pela polícia. Portanto, um judeu não deve cumprir as leis apenas pelo medo do castigo aplicado pelo Tribunal, mas principalmente pelo medo da transgressão por si só. Quando as pessoas vivem com a consciência de que D'us vê tudo o que ocorre e que todos os nossos atos têm consequências, desenvolvem uma sociedade verdadeiramente honesta.
 
Podemos utilizar este conceito para responder os nossos questionamentos. Apesar de um juiz também ter como função a aplicação dos castigos aos que transgridem a lei, sua principal contribuição deve ser justamente criar esta atmosfera necessária de temor a D'us. Se o propósito do sistema judicial fosse apenas criar o medo do castigo, não seriam necessários tantos juízes, ao contrário, um reforço da força policial seria muito mais efetivo. Porém, como o propósito principal de um juiz é criar uma sociedade onde a presença de D'us é palpável, então é possível entender a necessidade de tantos juízes, até mesmo em cidades tão pequenas.
 
Esta também é a conexão com a Festa de Sucót, na qual abandonamos nossas casas e, por uma semana, vivemos na “sombra de D'us”. Da mesma forma que o propósito de um juiz é trazer à sociedade uma atmosfera da presença de D'us, a Sucá também é um lugar onde a presença de D'us é sentida de uma maneira mais palpável. E um dos principais motivos de passarmos uma semana inteira dentro da Sucá é para trazermos para o ano inteiro esta percepção mais palpável da presença de D'us entre nós.
 
Estamos entrando no mês de Elul, o último mês antes do nosso julgamento de Rosh Hashaná. É a chance de consertarmos os nossos erros e fazermos decisões verdadeiras de melhorar. A claridade de que D'us está sempre perto é fundamental para evitarmos as transgressões e para nos incentivar no nosso crescimento espiritual. Normalmente erramos por termos sempre desculpas e justificativas para fugir das nossas responsabilidades. Mas com a consciência de que D'us está presente em cada momento podemos ser mais honestos com nós mesmos. Além disso, viver constantemente com D'us ao nosso lado nos dá muito mais segurança e tranquilidade. 

“D'us está onde permitem que Ele entre” (Kotzke Rebe)

Shabat Shalom

R' Efraim Birbojm

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