“Era um fim de tarde normal, como qualquer outro dia. Yaacov estava dirigindo de volta para casa, após um dia difícil de trabalho. Ele ligou o rádio para escutar o noticiário, que falava sobre coisas de pouca importância. Entre elas, o repórter noticiou que em uma cidadezinha distante da Índia haviam morrido 3 pessoas de uma gripe desconhecida.
Alguns dias se passaram. Yaacov escutou nas notícias que já não eram mais apenas três mortos por causa daquela gripe misteriosa, mas trinta mil. Um grupo do Controle de Doenças dos Estados Unidos foi acionado para investigar o caso. Em poucos dias aquela já era a noticia mais importante, ocupando a primeira página de todos os jornais, pois a gripe havia começado a se espalhar pelo mundo. Já não era mais só na Índia, mas também no Paquistão, Irã e Afeganistão. Todos se perguntavam: “O que faremos para controlar esta epidemia?”. A Europa fechou suas fronteiras, seguida pelos Estados Unidos e Japão. Mas um doente com os sintomas da gripe misteriosa apareceu em um hospital da França. Começou o pânico, o vírus havia se alastrado por todo o mundo. Quando a pessoa contraía o vírus, após quatro dias de terríveis sofrimentos ela morria. O mundo todo assistia, sem poder fazer nada, milhares de pessoas morrendo diariamente. Cientistas trabalhavam dia e noite em busca de um antídoto, mas nada funcionava. De repente, veio a notícia mais esperada: haviam conseguido decifrar o código de DNA do vírus. Seria possível fabricar o antídoto, mas ainda era preciso conseguir a doação de células da medula óssea de alguém compatível e que não tivesse sido infectado pelo vírus.
Todos levaram suas famílias aos hospitais, para que os médicos pudessem identificar um doador compatível. A filha de Yaacov foi a escolhida entre milhares de pessoas. A notícia se espalhou por todos os lados de que um doador havia sido encontrado. O médico então se aproximou de Yaacov e da sua esposa e disse: “Não sabíamos que o doador seria uma criança. A quantidade de medula óssea necessária para a doação é muito grande, provavelmente ela não sobreviverá. Mas estamos falando de uma cura para toda a humanidade. Por favor, vocês concordam?” Foi uma difícil escolha para Yaacov e sua esposa. A filhinha foi consultada e aceitou doar sua vida para salvar a humanidade. E assim foi feito, a medula óssea foi retirada e o antídoto pôde ser fabricado, mas a pequena menina infelizmente não sobreviveu.
Na semana seguinte, a situação já estava sob controle. Apesar do enorme número de mortos, o vírus havia sido neutralizado e não oferecia mais perigo. A ONU decidiu então fazer uma cerimônia para honrar a filha de Yaacov. Mas nem todos foram à homenagem. Algumas pessoas ficaram em casa dormindo, outras preferiram fazer um passeio ou assistir um jogo de futebol na televisão. Agora que tudo estava tranquilo, não souberam dar valor àquela valente menina, que havia dado sua própria vida pela continuidade da humanidade”
Nossos bisavós e avós morreram para transmitir o judaísmo aos seus descendentes. Em épocas de perseguição, preferiram dar a vida a abandonar sua fé. Será que estamos honrando o que eles fizeram por nós? Em épocas de tolerância e tranquilidade, sentimos orgulho de sermos e vivermos como judeus?
Nesta semana lemos a Parashát Emor (literalmente “Diga”), que começa descrevendo a importância de os Cohanim (sacerdotes) manterem um nível muito elevado de pureza e espiritualidade. A Parashá também descreve detalhes das Festas do ciclo do calendário judaico, como Pessach, Shavuót, Sucót e Rosh Hashaná.
Um dos detalhes que a Parashá nos ensina é a Mitzvá de “Sefirat HaOmer”, a contagem diária que conecta a Festa de Pessach, que representa a liberdade física do povo judeu, com a Festa de Shavuót, o dia da entrega da Torá ao povo judeu no Monte Sinai, que representa a nossa liberdade espiritual. A Mitzvá consiste em fazer uma contagem diária progressiva, como uma pessoa que está ansiosa para receber um presente valioso. Porém, este período de contagem, que deveria ser um período de alegria, se transformou em uma época de luto e tristeza. Vinte e quatro mil alunos de Rabi Akiva, um dos maiores sábios da história do povo judeu, morreram durante uma terrível praga justamente durante os dias da Contagem do Omer. Nossos sábios explicam o motivo pelo qual eles morreram: não honravam uns aos outros.
Porém, este ensinamento não é fácil de ser entendido. Certamente os alunos do Rabi Akiva eram gigantes espirituais, pessoas quase no nível de anjos. Não honrar uns aos outros certamente não quer dizer que eles se ofendiam de maneira baixa e descontrolada. No enorme nível espiritual no qual eles se encontravam, houve alguma fagulha de falta de honra entre eles. Mas se foi apenas algo tão pequeno, por que eles morreram de forma tão prematura e trágica? Além disso, se eles estavam cometendo este erro, certamente não foi algo que começou do dia para a noite. Então por que D'us “guardou” a punição justamente para esta época do ano, nos dias da contagem do Omer?
Para responder estas perguntas, antes de tudo precisamos entender dois conceitos espirituais importantes. Em primeiro lugar, de acordo com o Rav Elyahu Dessler zt”l (Império Russo, 1892 – Israel, 1953), o objetivo de tudo o que existe no mundo material é que isto se transforme em um “receptáculo de santidade”. Por exemplo, quando uma pessoa utiliza um objeto de acordo com o seu propósito, então este objeto se eleva e se santifica. Mas quando algo não atinge seu objetivo, então a impureza espiritual se espalha sobre ele. Quanto maior o potencial de santidade, pior é o nível de impureza caso seu objetivo não seja atingido. É por isso que um corpo morto é a maior fonte de impureza existente, pois o objetivo do corpo é algo muito elevado: se transformar em uma “carruagem” para a nossa alma. Este potencial gigantesco termina no momento em que a pessoa morre e sua alma se separa do seu corpo, fazendo com que aquele corpo morto, que já não pode mais cumprir seu objetivo, se torne uma enorme fonte de impureza espiritual. Outro exemplo é quando o povo judeu está no exílio. Pelo fato de não estarmos cumprindo o nosso objetivo, então ficamos com um status de impureza espiritual. Foi isto o que ocorreu no exílio egípcio, no qual o povo judeu atingiu o nível 49 de impureza espiritual. É por isso que os dias após a saída do Egito rumo ao Monte Sinai se transformaram em uma época de purificação e preparação para o recebimento da Torá, pois era o fim do exílio e a volta ao nosso objetivo.
Outro conceito espiritual importante é explicado pelo Rav Shlomo Alkabetz zt”l (Grécia, 1500 – Israel, 1576). Segundo ele, todo rabino que ensina Torá aos seus alunos alimenta-os com sua alma, isto é, com a essência da sua própria espiritualidade. Este é um dos motivos pelo qual os alunos de Torá de uma pessoa são considerados como se fossem seus próprios filhos. Porém, cada aluno pega apenas uma pequena faísca desta espiritualidade. Somente quando estão todos os alunos unidos é que a influência espiritual do rabino consegue brilhar sobre eles em seu máximo potencial. Se por causa de um comportamento indevido os alunos causam uma separação entre si, acabam perdendo a influência espiritual plena que poderiam receber do rabino e fazem com que ela perca seu propósito.
Os alunos da Rabi Akiva, apesar de toda a sua grandeza espiritual, ao não honrarem uns aos outros no nível em que poderiam, causaram um afastamento entre eles. A consequência foi que eles não permitiram que a influência espiritual de Rabi Akiva, um gigante espiritual, um verdadeiro pilar do povo judeu, atingisse seu propósito. E, conforme explicado pelo Rav Dessler, quando algo não atinge seu objetivo surge a impureza espiritual. Quando chegaram os dias da Contagem do Omer, nos quais brilham as luzes da entrega da Torá e temos a oportunidade de aproveitar o brilho desta luz tão sagrada, se não nos esforçamos para aproveitar os méritos desta luz, isto se torna uma enorme acusação espiritual contra nós. Foi isto o que aconteceu com os alunos do Rabi Akiva. Por um erro que cometeram, eles fizeram com que o seu potencial de Torá diminuísse. Nos dias da Contagem do Omer, o desperdício do potencial espiritual fez com que eles acabassem pagando um preço muito caro.
Este conceito espiritual não se aplica somente à época da Contagem do Omer e à trágica morte dos alunos do Rabi Akiva. Ele nos ajuda a entender muitas épocas de tragédia que recaíram sobre o povo judeu durante a nossa história. Conforme nos ensinou Shlomo Hamelech (Rei Salomão), “Não há nada de novo sob o sol” (Kohelet 1:9), isto é, as coisas no mundo material se repetem em ciclos. Se quisermos aprender sobre o futuro, devemos estudar sobre o passado. Há algo que nos chama a atenção na história do povo judeu por ter se repetido diversas vezes: em geral, as grandes tragédias que recaíram sobre o povo judeu foram precedidas por épocas de tranquilidade, na qual os outros povos nos aliviaram do peso do exílio. Por exemplo, na época da Idade Média os judeus estavam completamente excluídos da sociedade, sendo desprezados e não tendo nenhum tipo de direito. Então chegou a época do Iluminismo, o fim da “Idade das trevas”, e os judeus começaram a se emancipar. Todos os países da Europa passaram a aliviar o peso sobre o povo judeu. Recebemos direitos de cidadania e passamos a ser tratados como iguais perante a lei.
Como D'us controla cada pequeno detalhe de tudo o que ocorre, é óbvio que todos os períodos de tranquilidade e de emancipação que tivemos na história foram “encomendados” por Ele, para que pudéssemos nos preparar para a vinda do Mashiach. Em alguns momentos o peso do exílio foi intencionalmente aliviado, pois a preparação para os dias do Mashiach exige um enorme trabalho espiritual para chegarmos ao nível de merecermos a redenção, e viver imerso em problemas frequentes e degradações constantes nos impede de atingir o impulso necessário para o nosso crescimento.
Isto significa que estes períodos de “luz” e alívio na situação do povo judeu vieram para que pudéssemos ter a tranquilidade para investir no nosso crescimento espiritual. Porém, ao invés de reconhecer a mensagem celestial e nos prepararmos para a redenção com alegria e com o aumento do conhecimento, infelizmente o povo judeu algumas vezes utilizou esta nova situação para se assimilar e perder sua essência espiritual. Como são épocas de muito potencial, então a consequência desta perda espiritual acabou sendo trágica. D'us sempre utiliza Sua Misericórdia para adiar a tragédia, dando tempo ao povo judeu de se arrepender de seu desvio. Porém, quando infelizmente o povo judeu não se arrepende, as consequências nos atingem de maneira dolorosa.
Estamos novamente em uma época de tranquilidade e liberdade religiosa. Apesar de o antissemitismo colocar às vezes a cabeça para fora, fantasiado de “antissionismo”, os judeus espalhados pelo mundo têm a liberdade de cumprir Torá e Mitzvót sem nenhum tipo de perseguição. Porém, toda oportunidade vem junto com uma cobrança. Será que estamos utilizando esta tranquilidade para nos aproximarmos de D'us, ou infelizmente estamos nos assimilando, nos acomodando e repetindo o mesmo erro dos nossos antepassados? É responsabilidade de cada um de nós cuidar para que esta fase de tranquilidade possa ser um trampolim para o nosso crescimento espiritual e possa nos levar, em breve, para os dias da nossa redenção final.
Shabat Shalom
R' Efraim Birbojm