Bondade e sensibilidade

Shifra era a filha mais velha da família Greenbaum (nome fictício). Quando chegou a hora de começar a “sair de Shiduch” (procurar um noivo), ela recusou todas as propostas que surgiram, mesmo após a insistência dos pais. Com o passar do tempo sua mãe começou a ficar extremamente preocupada, pois os irmãos mais novos de Shifra também já haviam chegado à  idade de se casar e ela não queria que seus filhos mais novos se casassem antes de Shifra. Mas Shifra incentivou que os irmãos saíssem de Shiduch e afirmou que não se importaria se eles se casassem antes dela.
 
Anos se passaram. Todos os irmãos mais novos de Shifra já haviam casado e ela já estava com trinta e dois anos de idade. Então um dia a mãe de Shifra falou para ela, com muita dor e sofrimento:
 
– Não entendo sua atitude. Por que você despreza todos os bons pretendentes que são apresentados para você? Quero te dizer uma coisa: você está me causando tanta dor que eu preferia estar morta!
 
Ao ouvir isso, Shifra decidiu começar imediatamente a procurar alguém para casar. Dentro de pouco tempo ela já estava noiva de um excelente rapaz, um estudioso de Torá. No dia do casamento todos estavam muito felizes. Assim que a “Chupá” terminou, a mãe de Shifra virou-se para um familiar e disse: “Este é o dia mais feliz da minha vida”. Essas foram suas últimas palavras, pois logo depois ela teve um colapso, caiu e faleceu.
 
Nos dias de “Shiva” (7 dias de luto após o falecimento) todos procuraram Shifra para pedir explicações sobre o que havia acontecido. Ela então contou, muito emocionada:
 
– Há alguns anos minha mãe estava muito doente. Ela procurou um Tzadik (Justo), que deu a ela uma grande Brachá: ela viveria para casar todos os filhos. Eu entendi que isso significava que, enquanto todos os filhos não estivessem casados, ela ainda estaria viva. Foi por isso que eu decidi que não iria me casar, e assim poderia dar a ela muitos anos de vida. Mas no dia em que ela me disse que preferia estar morta a me ver solteira, eu percebi que naquele momento eu estava fazendo a ela mais mal do que bem ao recusar as propostas de casamento. Então eu imediatamente concordei em me casar, e foi isso o que aconteceu. (História Real, retirada do livro “Major Impact!”, de autoria de Dovid Kaplan). 
 


A Parashat desta semana, Vayetzei, começa contando sobre a viagem de Yaacov para a casa de seu tio Lavan, que ocorreu por dois motivos: para fugir da fúria de seu irmão Essav, que queria matá-lo, e para procurar uma esposa entre os familiares de sua mãe, Rivka. A Torá então descreve um estranho incidente que ocorreu quando Yaacov chegou em Haran, a cidade dos arameus onde sua mãe havia nascido. Ele foi diretamente para o poço de água da cidade e viu que, apesar de ainda ser início da tarde, os pastores já haviam parado de trabalhar. Yaacov então deu uma grande bronca neles em relação à falta de ética no trabalho: “Ele disse: 'Vejam, o dia ainda é longo; ainda não é hora de juntar o rebanho; deem água ao rebanho e voltem a pastorear'” (Bereshit 29:7). Em outras palavras, Yaacov disse: “Se as ovelhas não são de vocês, então vocês estão sendo negligentes na sua responsabilidade com seus patrões. E se são de vocês, então vocês são preguiçosos”.
 
Este incidente relatado pela Torá levanta dois questionamentos. Em primeiro lugar, sabemos que a Torá é muito concisa e somente escreve eventos que são realmente relevantes. Então por que escrever este incidente aparentemente sem nenhuma importância? Além disso, o ato de Yaacov de censurar os pastores da cidade parece uma atitude um pouco arrogante, por se tratar de um estranho recém-chegado à cidade. Por que ele achou importante dar esta bronca nos pastores de Haran?
 
A Torá, quando fala sobre Lavan, o descreve como um “Ramai”, que significa “trapaceiro”, e não como um ladrão. Um ladrão não demonstra gostar da sua vítima, ele mostra abertamente que sua única intenção é prejudica-la. Ao contrário do ladrão, o Ramai se apresenta como alguém confiável, demonstrando querer o bem estar da vítima, e somente depois acaba causando danos sem que ela perceba. É isto o que percebemos quando observamos atentamente os atos de Lavan. Ele prometeu que Yaacov se casaria com sua filha Rachel após trabalhar sete anos por ela, mas no dia do casamento Lavan trocou Rachel por sua outra filha, Lea, e ainda justificou seu ato indecente dizendo que naquela região ninguém casava a filha mais nova antes da mais velha. Seu nome Lavan, que literalmente significa “branco”, demonstra que por fora ele transmitia ser alguém puro e correto, alguém de confiança, mas por dentro era uma pessoa egoísta e desonesta.

Na realidade, esta era uma característica não apenas de Lavan, mas de todos os arameus, pois a palavra “Arami” (arameu) tem exatamente as mesmas letras de “Ramai”, demonstrando que esta era uma característica presente em todos os moradores daquela região. Porém, esta informação desperta um grande questionamento. Não podemos esquecer que muitos dos nossos patriarcas vieram justamente daquela região. Avraham, Sara, Rivka, Rachel e Lea eram descendentes dos arameus. Então por que nós não vemos neles este traço de caráter tão negativo, se era algo inerente daquela região?
 
Explicam os nossos sábios que a palavra “Midót”, que significa “traços de caráter”, também significa “medidas”. Se perguntarmos a um cozinheiro se o sal é algo bom ou ruim na comida, ele nos responderá que depende, pois se for utilizado sal demais isto certamente estragará a comida, mas se for utilizado pouco sal a comida ficará sem gosto. Para o sal ser algo bom, deve ser utilizado na medida certa. Ensina o Rav Yohanan Zweig que o mesmo ocorre em relação aos nossos traços de caráter, pois nenhum deles é essencialmente positivo ou negativo, dependem da maneira como são utilizados. Mesmo os melhores traços de caráter podem ser mal utilizados, e mesmo os piores traços de caráter podem ser canalizados e utilizados de maneira produtiva.
 
O traço de caráter de ser um “Ramai”, apesar de normalmente ser utilizado para enganar e levar vantagem sobre os outros, não é necessariamente algo negativo. O Ramai atua baseado no desejo natural do ser humano de querer sempre levar vantagem sobre os outros. O trapaceiro engana suas vítimas fazendo-as acreditar que elas estão levando a melhor na negociação, e quando as vítimas percebem que foram enganadas já é tarde demais. Mas apesar de ser algo negativo, o que está por trás desta característica é um grau muito elevado de sensibilidade. Para ser um trapaceiro de sucesso a pessoa precisa perceber as necessidades e desejos de seu companheiro. O trapaceiro usa sua sensibilidade aguçada para deixar sua vítima em desvantagem. Mas se ele conseguir utilizar esta sensibilidade de maneira positiva, pode trazer muitos benefícios ao mundo. Nossos patriarcas que vieram de Haran se destacaram muito no atributo de Chessed (bondade) justamente pois canalizaram o lado negativo da trapaça para algo positivo. Eles aproveitaram a enorme sensibilidade, a capacidade de sentir o que o outro realmente precisa, para fazer o bem. Normalmente fazer Chessed, para a maioria das pessoas, significa dar ao próximo o que nós achamos que ele precisa. Mas o Chessed verdadeiro é tentar realmente perceber o que o outro está sentindo e o que ele necessita.
 
Por outro lado, esta sensibilidade aguçada pode ser um grande desafio. Um dos nossos maiores testes na vida é termos ética no trabalho. Normalmente nos comportamos muito diferente quando nosso chefe não está olhando. É muito tentador encontrar maneiras de enganar o chefe e fingir que estamos trabalhando enquanto na verdade estamos cuidando das nossas próprias necessidades, como aquele que finge estar digitando no computador um relatório do escritório enquanto está na realidade navegando nas redes sociais. Quanto mais sensibilidade alguém tem, quanto mais consegue entender a cabeça do outro, mais consegue enganar e manipular, fazendo com que o outro pense que ele é um funcionário exemplar.
 
Somos descendentes daqueles que conseguiram se sobressair justamente na característica de sensibilidade. Isto significa que precisamos nos proteger do tropeço de querer utilizar negativamente esta sensibilidade. Uma das maneiras é criar uma forte ética no trabalho, tentando fazer jus a tudo o que recebemos e trabalhando o tempo inteiro como se o chefe estivesse ao nosso lado acompanhando cada atitude. Devemos enraizar em nossa essência que somente aceitaremos os ganhos pelos quais nós trabalhamos e merecemos de verdade, e devemos sentir repulsa de querer tirar proveito de algo que nós não merecemos. Somente assim estaremos garantindo que nunca nos tornaremos pessoas desonestas e trapaceiras.
 
Yaacov tinha total consciência de que os arameus tinham o traço de caráter de serem “Ramaim”. Ao ver os pastores descansando ao lado do poço de água no meio do dia, ficou evidente que eles estavam utilizando este traço de caráter de maneira negativa, pois uma das consequências deste traço de caráter mal utilizado é a preguiça e a busca de caminhos mais curtos e fáceis na vida. Quando Yaacov viu isso, censurou-os com a intenção de despertá-los, para ensinar que se eles fossem mais éticos no trabalho, poderiam canalizar este traço de caráter para fazer bondades e ter mais sensibilidade com as necessidades dos outros.

Este é um grande teste que temos na vida. Mas se nos esforçarmos, conseguiremos usar nossa herança espiritual da maneira correta. O importante é sermos muito honestos em qualquer situação, cada um começando consigo mesmo, pois é negativo enganar os outros, mas pior ainda é enganar a si mesmo. 

SHABAT SHALOM
 
Rav Efraim Birbojm

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