Era um dia difícil no hospital. Havia muitos doentes internados, alguns em estado grave, e o trabalho era muito intenso. Mas o que mais preocupava Sofia, uma sobrecarregada enfermeira, era um senhor de idade avançada que estava com uma grave pneumonia. Sofia viu um rapaz entrar no quarto. Certamente deveria ser o filho daquele senhor, que havia vindo ficar com ele nos seus últimos momentos. Ela inclinou-se e disse ao idoso paciente: “Seu filho está aqui”. Com grande esforço o homem abriu os olhos, mas logo em seguida fechou-os novamente e estendeu a mão. O rapaz imediatamente segurou a mão dele e sentou-se ao lado da sua cama. Por toda a noite, o rapaz ficou ali sentado, segurando a mão daquele senhor e sussurrando palavras de conforto. Infelizmente, o paciente não aguentou e faleceu logo pela manhã. Em instantes, a equipe de funcionários do hospital chegou ao quarto para desligar os equipamentos. A enfermeira então se aproximou do rapaz e começou a oferecer-lhe as condolências, mas foi interrompida:
– Quem era esse homem? – perguntou o rapaz.
– Como assim, que era este homem? Não era o seu pai? – questionou a enfermeira, assustada.
– Não. Não era meu pai. Eu nunca vi este homem antes na minha vida – explicou o rapaz – Eu estava aqui no hospital apenas procurando o quarto onde meu primo está internado, pois queria fazer-lhe uma visita.
– Então, porque você não falou nada quando eu anunciei para ele que seu filho havia chegado? – perguntou a enfermeira, sem entender.
O rapaz, com um triste sorriso no rosto, deu à enfermeira uma das maiores lições de bondade que ela recebeu na vida:
– Pois percebi que ele precisava do filho, mas o filho não estava aqui. Como ele estava doente demais para reconhecer que eu não era seu filho, entendi que naquela hora ele precisava de mim. Ninguém precisa morrer sozinho, por isso eu fiquei…
Na Parashá desta semana, Vayerá (literalmente “E apareceu”), a Torá começa a ressaltar um dos atributos no qual Avraham Avinu mais se destacou: o Chessed (bondade). Avraham é o “patriarca da bondade”. Ele tinha uma tenda aberta nas quatro direções, para que qualquer viajante que passasse por sua tenda pudesse entrar e receber água, comida e um local agradável para descansar. E a Parashá começa justamente com a visita de três anjos, mas que pareciam apenas simples beduínos, à tenda de Avraham. A Torá então “gasta” muitos versículos para descrever, com detalhes, a maneira como Avraham cumpriu a Mitzvá de “Achnassat Orchim” (receber convidados), justamente para que, através de uma análise cuidadosa dos atos de Avraham, possamos aprender o que D'us exige de nós na área de bondade ao próximo.
Porém, na continuação da Parashá, a Torá também se alonga muito nos atos de Chessed feitos por Lót, o sobrinho de Avraham. Lót também recebeu em sua casa dois dos “beduínos” que visitaram Avraham. Mas sabemos que Lót não era uma pessoa de boa índole, tanto que escolheu viver em Sdom, uma cidade de pessoas egoístas e imorais. Então por que a Torá se alongou ao descrever os atos de bondade de Lót como fez com os atos de Avraham? O que podemos aprender dos atos de Lót que ainda não havíamos aprendido dos atos de Avraham?
O entendimento fica ainda mais difícil quando prestamos atenção nos detalhes. Enquanto Avraham recebeu seus convidados apenas quando eles chegaram à porta de sua casa, como está escrito: “E ele (Avraham) estava sentado na entrada da tenda” (Bereshit 18:1), Lót foi receber seus convidados no portão da cidade, como está escrito: “E Lót estava sentado no portão de Sdom” (Bereshit 19:1). Enquanto Avraham ofereceu apenas uma simples refeição aos seus convidados, como está escrito: “E eu pegarei um pedaço de pão para sustentar o coração de vocês” (Bereshit 18:5), Lót preparou um verdadeiro banquete, como está escrito: “E (Lót) fez para eles um banquete” (Bereshit 19:3). Enquanto Avraham ofereceu a eles a sombra de uma árvore para que descansassem, como está escrito: “E se reclinem sob a árvore” (Bereshit 18:4), Lót ofereceu a eles hospedagem completa, para que pudessem passar a noite, como está escrito: “Voltem, por favor, para a casa de seu servo e passem a noite” (Bereshit 19:2). Enquanto Avraham acolheu seus convidados mesmo enquanto estava sentindo as terríveis dores do seu Brit-Milá (circuncisão), Lót chegou ainda mais longe, arriscando a sua vida e a vida de sua família para poder acolher seus convidados, pois em Sdom havia pena de morte para qualquer demonstração de bondade com pessoas de fora.
É interessante perceber que, em relação à forma de receber os convidados, aparentemente Lót se esforçava muito mais do que Avraham para ser agradável e hospitaleiro. Se a intenção da Parashá era ressaltar o enorme nível de bondade de Avraham, então por que a Torá descreveu logo depois os atos de bondade de Lót, de maneira a até mesmo “ofuscar” toda a bondade de Avraham? E se as bondades de Lót foram realmente maiores do que as de Avraham, por que Avraham é considerado o nosso modelo de Chessed, e não Lót?
Explica o Rav Yohanan Zweig que qualquer ato de Chessed normalmente vem junto com um sentimento de vergonha. Em geral, aquele que recebe a bondade sente um desconforto, pois ninguém gosta de se sentir dependente de outra pessoa. Então como o benfeitor pode superar este obstáculo e fazer uma bondade completa?
David Hamelech (Rei David) nos ensina: “Para sempre será construído com Chessed” (Tehilim 89:3). Mas a palavra “Olam”, que significa “para sempre”, também significa “mundo”. Isto quer dizer que o mundo foi criado com Chessed e, se observamos os atos da Criação, aprenderemos a forma correta de fazer bondade. Na Criação do mundo, D'us começou a partir do caos e foi organizando todos os tipos de criaturas, desde os objetos inanimados, passando pelas árvores, pelas pequenas criaturas aquáticas, pelos grandes animais e finalmente chegando à criação do primeiro ser humano, Adam Harishon. Mas se Adam era o propósito de toda Criação, por que ele foi criado por último? Pois D'us queria ensiná-lo que tudo o que foi criado era apenas para seu uso e seu benefício. Porém, não seria melhor criar primeiro Adam Harishon e depois criar o mundo inteiro diante dele, ressaltando ainda mais a bondade que D'us estava fazendo com ele? Por que criar tudo e apenas depois colocar Adam em um cenário já pronto?
A resposta é que se Adam tivesse sido criado antes de tudo, ele teria visto claramente que todo o universo foi criado especificamente para ele, o que causaria nele vergonha e desconforto. Por isso D'us criou primeiro o mundo e tudo o que era necessário para a sobrevivência de Adam, e somente depois o criou. Desta maneira, D'us minimizou a percepção da ajuda direta que Ele estava dando a Adam e, portanto, diminuiu o sentimento de dependência e desconforto.
Quando fazemos bondades, devemos nos assemelhar a D'us, a Fonte de toda a bondade. D'us é a bondade perfeita, pois Ele não precisa de nada e não há nada que podemos oferecer a Ele. Portanto, quando Ele faz bondades, é um ato perfeito de doação, sem receber nada em troca. Da mesma maneira, devemos diminuir naquele que está recebendo a bondade a percepção da nossa participação neste ato. Isto permite com que aquele que recebe a bondade não se sinta endividado. Não devemos ressaltar e enfatizar o “peso” que um convidado nos causa, pois quanto menos o convidado sente que estamos fazendo algo especial para ele, mais confortável se sente.
Infelizmente, a maioria das bondades que fazemos não está de acordo com esta perspectiva correta. Normalmente, quando fazemos Chessed, nos sentimos pessoalmente preenchidos em sermos os benfeitores. Quanto mais enfatizamos a nossa participação no ato de bondade, maior a nossa satisfação. Porém, este tipo de Chessed é, na verdade, servir a si mesmo, não servir o outro. Quando pensamos somente no nosso bem estar e na nossa satisfação ao fazer uma bondade, estamos certamente negligenciando o sentimento daquele que recebe.
Portanto, daqui aprendemos que existem dois tipos de Chessed, um movido pela vontade sincera de ajudar ao próximo e outro movido pela vontade de se sentir preenchido. A Torá quis contrastar justamente estes dois tipos de bondade. Avraham fazia atos de Chessed que se assemelhavam aos atos de D'us. Ele sempre se esforçava para diminuir a demonstração do “peso” que os convidados causavam a ele, oferecendo somente o que já havia pronto, como a sombra e o pão. Somente quando os convidados já estavam mais confortáveis, já se sentiam “em casa”, ele aumentava o que era oferecido. No início ele ofereceu apenas um pouco de pão, mas acabou servindo língua com mostarda, uma comida de reis. A consequência é que aquele que recebia bondades de Avraham se sentia completamente confortável.
Por outro lado, podemos perceber que o Chessed de Lót era, na verdade, um ato egoísta. Lót preparou para os “beduínos” um banquete, utilizando suas melhores louças e seus talheres de prata, pois isto lhe dava satisfação. Isto também explica como Lót pôde ter oferecido à população enfurecida, que queria fazer mal aos seus convidados, as suas próprias filhas. Nenhuma pessoa bondosa normal teria este tipo de comportamento abominável! Entretanto, Lót fez isto porque queria que sua hospitalidade refletisse sua própria generosidade e grandeza espiritual. Esta era a verdadeira motivação para suas bondades, o egoísmo e a vontade de mostrar aos outros a sua generosidade. Isto é enfatizado pela forma como Lót suplicou aos habitantes de Sdom para que não fizessem mal aos seus convidados: “Eles estão sob a sobra do meu telhado” (Bereshit 19:8). Estas palavras deixam claro que a única preocupação de Lót era como o bem estar de seus convidados refletiria sobre sua reputação. Foi por isso que, quando ele ofereceu aos convidados hospedagem, eles reagiram de uma maneira grosseira e responderam: “Não, dormiremos na rua” (Bereshit 19:2). Provavelmente quando Lót ofereceu a eles ajuda, estava apenas querendo enfatizar e ressaltar sua própria generosidade e sua grandeza de espírito. Isto causou nos convidados uma resposta agressiva, que era reflexo do desconforto causado.
A Torá recorda o Chessed de Lót junto com o Chessed de Avraham, mas não para ofuscar os atos de Avraham, e sim para ressaltar o valor de um Chessed feito com motivações verdadeiras. Um dos fatores mais importantes para um Chessed verdadeiro e completo é minimizar o desconforto de quem recebe. Mesmo que os atos de Lót foram maiores do que os de Avraham, eles foram feitos com motivações egoístas, com o único propósito de se engrandecer aos olhos dos outros e se sentir satisfeito com seus próprios bons atos, e por isso causaram desconforto. Avraham fazia atos mais simples justamente por serem bondades verdadeiras e com o intuito de minimizar a percepção de que ele estava fazendo algo especial pelos convidados. Este deve ser o nosso modelo de bondades e assim devemos tentar nos comportar. Pois, aos olhos de D'us, um pequeno bom ato feito com recato e com as motivações corretas é muito maior do que um grande ato feito com egoísmo e orgulho.