“Roberto estava distraidamente dirigindo seu carro, mais preocupado com as contas a pagar e com o planejamento das férias de julho do que com o trânsito. De repente, seu celular tocou e ele “despertou”. Era sua esposa, aflita, querendo saber onde ele estava.
– Fique tranquila, querida, estou quase chegando em casa. Já estou na Marginal Pinheiros.
– Ai, meu D'us! – interrompeu a esposa, com a voz muito preocupada – Querido, tome cuidado. Acabei de escutar no rádio que tem um maluco na Marginal Pinheiros dirigindo na contra mão.
– Querida, você tem razão. Estou vendo um carro vindo pela contramão. Que maluco, este motorista deveria ser preso! Ei, não é apenas um carro que está na contramão, são 2… não, são 5… são mais de 10…”
A piada é engraçada, mas infelizmente é exatamente assim que vivemos. Sempre nós estamos certos e os outros estão errados. E muitas vezes isto pode acabar custando caro espiritualmente.
Nesta semana lemos a Parashá Korach, que nos ensina a gigantesca força da inveja e da busca de honra, que conseguem desviar até mesmo pessoas boas e corretas. Korach, o primo de Moshé, era um homem espiritualmente elevado, da tribo de Levi, que acabou se desviando por causa da vontade de se tornar o líder do povo judeu e se rebelou contra a liderança de Moshé. De acordo com o Rav Avraham ben Meir zt”l (Espanha, 1092 – 1167), mais conhecido como Ibn Ezra, a rebelião ocorreu logo depois da inauguração do Mishkan (Templo Móvel), quando Aharon e seus filhos foram designados, no lugar dos primogênitos, como os responsáveis por todos os serviços espirituais. Korach, que também era primogênito, se enfureceu por não ter sido o escolhido. Ele conseguiu juntar outros 250 homens da tribo de Levi, todos primogênitos, e questionou os cargos de Moshé e de Aharon, utilizando a força da zombaria. Ridicularizou Moshé e as Mitzvót da Torá em público, querendo demonstrar que a escolha de Moshé e as leis que ele havia ensinado ao povo não eram Divinas, e sim frutos de sua cabeça.
Apesar de ter sido humilhado em público, Moshé, o mais humilde de todos os homens, teve tranquilidade. Ele sabia que a rebelião era uma afronta direta a D'us, que o havia escolhido pessoalmente como líder. Moshé entendeu que as consequências seriam trágicas, e por isso tentou convencer Korach e seus seguidores a desistirem da rebelião. Ao perceber que eles estavam obstinados e não conseguiam escutar nenhum argumento racional, Moshé ainda tentou uma última estratégia: adiar a discussão para o dia seguinte, como está escrito: “Ele (Moshé) disse para Korach e para todo o seu grupo: Amanhã D'us fará conhecer aquele que Lhe pertence e aquele que é sagrado” (Bamidbar 16:5). Moshé achou que eles estavam exaltados pelo calor do momento, mas que se acalmariam quando voltassem para casa e acabariam desistindo da rebelião.
Observando com cuidado o versículo desta tentativa de Moshé de ganhar tempo para esfriar os ânimos, há algo que nos chama a atenção. A linguagem utilizada por Moshé foge um pouco do padrão, pois ele não falou “Machar”, que literalmente significa “amanhã”, e sim “Boker”, que significa “manhã”. Por que Moshé falou desta maneira com Korach? Qual era a mensagem que ele estava transmitindo?
Infelizmente o ser humano tem uma grande dificuldade em reconhecer seus erros. Estar certo nos causa uma sensação de superioridade, enquanto estar errado nos causa uma sensação de inferioridade. Por isso, qualquer coisa que sugira que estamos errados nos incomoda, pois é uma ameaça à nossa autoestima. Temos um mecanismo de defesa, chamado “dissonância cognitiva”, que tenta, de forma subconsciente, bloquear nossa busca pela verdade toda vez que somos ameaçados em nossas certezas. Este mecanismo nos faz procurar justificativas e racionalizações para nossos erros, encobrindo-os e ignorando-os, ao invés de os tratarmos de maneira objetiva. Por isso é tão difícil a pessoa enxergar que errou e desagradou a D'us. Porém, no deserto era diferente, pois havia algo que diariamente demonstrava o nível de conexão das pessoas com D'us: o Man, que caía do céu e alimentava o povo judeu. Quando o Man caía de manhã cedo, não caía para todos no mesmo lugar. Se a pessoa era Tzadik (justa), o Man caía na porta de sua tenda e ela não precisava de nenhum esforço para buscá-lo. Mas se a pessoa não era Tzadik, seu Man caía longe de sua tenda.
Explicam nossos sábios que quando Moshé utilizou a palavra “Boker”, ele estava transmitindo a seguinte mensagem para Korach: “Querido primo, até hoje você sempre foi um grande Tzadik, e a prova disso é que o Man cai todas as manhãs na porta da sua tenda. Mas vamos ver amanhã de manhã, após você ter iniciado esta rebelião, onde o seu Man vai cair”. Moshé estava demonstrando para Korach, de maneira lógica e verificável, que a rebelião era um grande erro. Ele estava dando a chance de Korach entender que a rebelião era uma transgressão tão grave aos olhos de D'us que mudaria seu status, de um dia para o outro, de Tzadik para Rashá (malvado). Era a chance de Korach enxergar que estava errado e se arrepender.
Korach não se abalou, pois estava confiante na retidão dos seus atos. Mas o que aconteceu na manhã seguinte? O Man de Korach caiu longe de sua tenda, exatamente conforme Moshé havia advertido, demonstrando de forma clara que D'us estava descontente com ele. O que deveria ter ocorrida após esta incrível prova Divina da culpa de Korach? Ele deveria ter se arrependido pelo seu erro, começando com um pedido público de desculpas a Moshé por todas as ofensas e zombarias que ele havia feito. Ao perceber que não estava agradando a D'us com seu ato, Korach deveria ter mudado. Deveria ter reunido todos os rebeldes, que ele havia pessoalmente convencido a se unirem em um plano para derrubar Moshé, e explicado que ele havia se enganado. Mas infelizmente sabemos que não foi este o final da história.
Como pode ser que Korach, uma pessoa tão elevada, não enxergou a mensagem explícita de D'us? Por que ele não mudou, mesmo após ter visto que estava errado? Explica o Rav Shmuel Greineman shlita que quando uma pessoa está obstinada, ela fica cega e não consegue enxergar seus erros, mesmo quando são muito graves. Ao invés de assumir seu erro, a pessoa obstinada procura justificativas e racionalizações para sua transgressão. Foi exatamente isto o que aconteceu com Korach. Ao ver de manhã que o Man realmente havia caído longe de sua tenda, ao invés de entender que ele estava errado e que sua rebelião era uma transgressão, ele racionalizou e interpretou a mensagem de D'us justamente ao contrário. Ele juntou seus seguidores e anunciou: “Hoje meu Man caiu longe da minha tenda. Isto é um sinal de que D'us está bravo conosco. E o único motivo que pode explicar a irritação de D'us é que não estamos nos levantando contra a dominação de Moshé com toda a força que deveríamos. D'us quer que continuemos nossa rebelião contra Moshé, mas com mais força e determinação”. Korach continuou com sua rebelião até o fim, completamente obstinado, causando não apenas a sua morte precoce, mas também a morte de sua família e de todos os seus seguidores.
É assustador ver Korach, um homem com um potencial espiritual tão grande, ter caído de maneira tão “infantil”, tentando interpretar a bronca de D'us como se tivesse sido um incentivo à sua rebelião. E se alguém naquele nível estava sujeito a esta confusão, muito mais nós, que estamos em um nível espiritual mais baixo. Então o que fazer para não cairmos no mesmo erro de Korach? Como ter certeza de que as nossas decisões não estão sendo influenciadas, de forma subconsciente, pelas nossas vontades de estarmos sempre certos?
A resposta está em um importante ensinamento dos nossos sábios: “Faça para você um rabino e adquira para você um amigo” (Pirkei Avót 1:6). O rabino é um conhecedor das leis do mundo espiritual que, baseado nos ensinamentos da Torá, pode nos aconselhar e nos orientar em diversas áreas da vida. Já um amigo de verdade, cuja amizade valeria a pena mesmo que fosse necessário pagar por ela, é aquele que nos dá uma bronca sempre que nos vê fazendo algo errado. O ponto em comum entre o rabino e o amigo verdadeiro é que, por estarem isentos dos nossos interesses e desejos pessoais que nos desviam da verdade, e por se importarem de verdade com o nosso crescimento, conseguem nos ajudar de uma maneira mais objetiva.
Gostamos da sensação de estarmos sempre certos, e por isso é tão difícil buscar a verdade. Mas aprendemos de Korach que viver em uma mentira pode ser trágico. Não podemos confiar apenas em nós mesmos, pois estamos sempre muito suscetíveis a nos enganarmos. Por isso é importante buscar constantemente o aconselhamento das pessoas que realmente gostam tanto de nós que saberão nos dar, por amor, uma bronca quando for necessário.
SHABAT SHALOM
Rav Efraim Birbojm