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Rafael, nos seus quase oito anos, já tinha adquirido um hábito nada saudável. Tudo para ele se resumia em dinheiro. Queria saber o preço de tudo o que via e, se não custasse grande coisa, para ele não tinha valor algum. Rafael não entendia que há muitas coisas que o dinheiro não compra. E, dentre estas coisas, algumas são as melhores da vida.
Certo dia, no café da manhã, Rafael colocou cuidadosamente sobre o prato da sua mãe um papelzinho dobrado. Quando a mãe chegou, ela viu o bilhete, abriu e leu: “Mamãe, você me deve: Três reais por levar recados. Dois reais por tirar o lixo. Dois reais por varrer o chão. Dois reais por arrumar a cama. Total da dívida: Nove reais”.
A mãe espantou-se em um primeiro momento. Depois sorriu, guardou o bilhetinho no bolso do avental e não disse nada. O garoto foi para a escola e retornou faminto. Correu para a mesa do almoço e viu, sobre o seu prato, o seu bilhetinho com nove reais em cima. Os seus olhinhos brilharam. Enfiou depressa o dinheiro no bolso e ficou imaginando o que compraria com aquele dinheiro. Foi então que ele percebeu que havia outro papel ao lado do seu prato, igualzinho ao seu e bem dobrado. Curioso, abriu e leu. Era um bilhete escrito pela sua mãe: “Meu querido filhinho, você me deve: Por cuidar da sua catapora e das suas gripes: nada. Pelas roupas, calçados e brinquedos: nada. Pelas três refeições diárias e pelo lindo quarto: nada. Total que você me deve: nada, pois tudo o que eu faço para você, eu faço por amor”.
Rafael ficou sentado, lendo e relendo a sua conta. Não conseguia dizer nenhuma palavra. Depois se levantou, pegou os nove reais e os colocou na mão da sua mãe. A partir daquele dia, Rafael passou a ajudar sua mãe por amor.”
Não é apenas com as crianças que isto ocorre. Infelizmente, pelo amor aos nossos bens e o desejo de sempre termos mais, nos desconectamos da nossa espiritualidade e nos tornamos pessoas mal agradecidas.
Nesta semana lemos duas Parashiót juntas, Vayakel (literalmente “E reuniu”) e Pekudei (literalmente “Contas”). Apesar de a Torá ter dado detalhadas instruções sobre a construção do Mishkan (Templo Móvel) nas Parashiót anteriores (Terumá, Tetsavê e Ki Tissá), nas duas Parashiót desta semana a Torá repete os detalhes construtivos do Mishkan, porém desta vez não apenas como uma ordem de D'us, e sim como a efetiva execução.
A Parashá Pekudei começa com um detalhe interessante. Moshé prestou contas de todos os materiais que foram doados, como está escrito: “Estas são as contas do Mishkan, o Mishkan do Testemunho, que foram contadas sob o comando de Moshé” (Shemot 38:21). Apesar de ser uma pessoa acima de qualquer suspeita, Moshé achou que era importante para o povo a comprovação de que toda a doação havia sido efetivamente utilizada na construção do Mishkan. Não se tratavam de materiais simples e baratos, como tijolos e cimento, e sim materiais caros, como ouro, prata, pedras preciosas, tecidos e couros. Nada havia sido desviado para usos particulares.
O Midrash (parte da Torá Oral) conecta este versículo sobre a prestação de contas de Moshé com outro versículo, ensinado por Shlomo Hamelech (Rei Salomão): “Um homem de confiança terá muitas Brachót (bênçãos)” (Mishlei 28:20). Isto quer dizer que justamente pelo fato de uma pessoa ser confiável é que virá para ela uma abundância de Brachót. O Midrash diz que este versículo de Mishlei se refere a Moshé Rabeinu, que se tornou uma pessoa de integridade inigualável e, por isso, foi apontado como o tesoureiro responsável pela contabilidade de todas as doações feitas pelo povo para a construção do Mishkan. Para trazer um apoio de que o versículo de Mishlei se refere a Moshé, o Midrash traz outro versículo: “Não é assim Meu servo Moshé. Ele é confiável em toda a Minha casa” (Bamidbar 12:7). Mas qual é a conexão entre ser uma pessoa confiável e receber uma abundância de Brachót? E por que o versículo “Ele é confiável em toda a Minha casa” é utilizado para atestar a integridade financeira de Moshé, se o versículo se refere à singularidade da profecia de Moshé, única e inigualável, e não à sua honestidade? E por que Moshé era a única pessoa confiável para este cargo? Não havia outras pessoas honestas em sua geração?
Outro questionamento surge ao analisarmos um ensinamento do Talmud (Taanit 8b), que afirma que as Brachót somente repousam sobre as coisas que estão escondidas dos nossos olhos. A partir do momento que algo é contado, o seu potencial de Brachá se perde. Mas se este conceito do Talmud é verdadeiro, então por que a nossa Parashá começa justamente apresentando a contabilidade dos materiais doados para a construção do Mishkan? Se contar as coisas tira o seu potencial de Brachá, não é uma enorme contradição os materiais do Mishkan terem sido contados?
De acordo com o Zohar (parte mística da Torá), pelo fato desta contagem ter um propósito sagrado, então neste caso a contagem era permitida, como também ocorre, por exemplo, na contagem dos rebanhos para a retirada do “Maasser” (dízimo). Porém, como podemos entender este conceito do Talmud, de que algo deve ficar oculto dos nossos olhos para que receba Brachá, mas que isto não se aplica se a contagem é feita por motivos sagrados?
Explica o Rav Yohanan Zweig que a resposta está em outro interessante ensinamento do Talmud (Baba Metsia 21b). Quando uma pessoa encontra na rua um objeto perdido sem nenhum tipo de sinal que o identifique, mesmo assim a pessoa ainda não tem a permissão de pegar para si este objeto, a não ser que tenha certeza que já passou bastante tempo desde o momento da perda, o suficiente para que o dono do objeto já tenha sentido sua falta e já tenha desistido dele. Entretanto, o Talmud afirma que se o objeto encontrado for dinheiro e não houver no dinheiro nenhum sinal de identificação, então a pessoa pode imediatamente ficar com ele. Porém, como podemos ter a certeza de que a pessoa já percebeu que perdeu o dinheiro? Responde o Talmud que “a pessoa constantemente checa seus bolsos para se certificar que seu dinheiro ainda está lá”. Isto quer dizer que, quando encontramos dinheiro sem sinal de identificação, sempre podemos ter a certeza de que a pessoa que perdeu já está ciente de sua perda e já desistiu de procurar seu dinheiro e, por isso, podemos ficar com o dinheiro.
O Talmud não está apenas nos ensinando uma Halachá (lei) em relação a objetos perdidos, mas também está nos ensinando algo incrível sobre a psicologia do ser humano. É inerente a qualquer ser humano a insegurança em relação às suas posses, algo que se manifesta através da necessidade que o ser humano tem de sentir o domínio sobre todas as suas propriedades. Ficar constantemente mexendo nos bolsos para checar se o dinheiro ainda está lá é um exemplo da necessidade que o ser humano tem de se sentir conectado às suas posses. Para atender esta necessidade de domínio, a pessoa fica constantemente contando o que tem, pois contar o que é seu traz ao ser humano um forte senso de domínio e posse. Algumas pessoas chegam ao absurdo de checar várias vezes no dia quanto dinheiro elas têm na conta ou na carteira, enquanto outros abrem o dia inteiro as notícias para saber o valor do dólar e das bolsas.
A palavra Brachá, que significa “Benção”, vem da mesma raiz da palavra “Breichá”, que significa “Reservatório, Fonte”. As Brachót são uma conexão com a nossa Fonte de existência, isto é, D'us. Se uma planta está conectada à terra, que é sua fonte, então ela se desenvolve e floresce. D'us é a fonte de toda a vitalidade. Quando o ser humano conecta algo à sua Fonte, ele recebe Brachá. Por outro lado, quando um ser humano quer demonstrar sua dominação sobre certo objeto, ele está separando este objeto de sua Fonte e, portanto, a Brachá é perdida. É por isso que a Brachá somente repousa sobre os objetos que estão escondidos dos nossos olhos, isto é, que não foram contados pelo ser humano, pois a contagem é uma maneira de demonstrar sua dominação sobre o objeto.
Esta é a diferença entre alguém que conta para si mesmo, de uma maneira dominadora, e alguém que conta “Leshem Shamaim” (em nome de D'us). Quando a contagem é para cumprir uma Mitzvá, então o próprio ato de contar conecta o objeto a D'us. Mas não adianta apenas o ato ser voltado a cumprir a vontade de D'us, pois mesmo quando uma pessoa recolhe e conta doações feitas para uma Mitzvá, como ocorreu na construção do Mishkan, existe o perigo do responsável por esta função sentir uma dominação ou uma conexão mais forte com estes fundos coletados. É por isso que o responsável por coletar as doações do Mishkan precisava ser alguém espiritualmente elevado. Moshé estava muito conectado com D'us, o que é atestado pelo versículo no qual D'us afirma que o nível de profecia dele era algo único e inigualável. Moshé estava tão elevado que é considerado como se ele estivesse na “casa de D'us”. Por isso Moshé era a pessoa mais adequada para ser o tesoureiro responsável por coletar e contar as doações que o povo judeu fez ao Mishkan, pois seus atos eram completamente puros e direcionavam todos os objetos doados diretamente para D'us, a Fonte de toda a Brachá.
Assim conseguimos entender a explicação do versículo “um homem de confiança terá muitas Brachót”. Aquele que é honesto, que faz tudo “Leshem Shamaim”, sem motivações pessoais, se torna uma pessoa completamente íntegra. Desta maneira, ele conecta todo o fruto dos seus esforços a D'us, a Fonte de toda a vitalidade, e pode florescer e crescer abundantemente, como uma planta conectada à terra que lhe dá os nutrientes necessários ao seu crescimento.
Desta explicação do Rav Yohanan Zweig fica um ensinamento muito importante e atual. Vivemos em uma sociedade completamente conectada aos valores materiais. O valor das pessoas é medido de acordo com a quantidade de bens que elas têm. Isto faz com que as pessoas se tornem conectadas aos bens materiais de uma maneira negativa, de uma forma dominadora, se desconectando da sua espiritualidade e da Fonte de vida, D'us. Para termos Brachá na vida, é preciso usar o mundo material de forma que ele seja canalizado para nossa espiritualidade. Quando colocamos no coração que tudo vem de D'us, quando somos honestos nos negócios, quando utilizamos o que temos para também ajudar os outros e quando valorizamos as pessoas pelos que ela são e não pelo que elas têm, certamente isto nos traz muitas Brachót na vida.
SHABAT SHALOM
R' Efraim Birbojm