Coração de ouro

“Gabriel gostava de aventuras e queria fazer uma viagem de balão. Enquanto estava esquentando o ar do balão e preparando os últimos detalhes, surgiu Marcos, um homem muito simples e ingênuo. Marcos ficou pasmado olhando para o balão que se inflava aos poucos. Ele morava em uma pequena cidade do interior, nunca tinha visto um balão, e ficou encantado com a ideia de viajar dentro de uma “cesta voadora”. Suplicou a Gabriel que o levasse junto para o voo, e estava tão entusiasmado com a possibilidade de ver sua cidade do alto que não parava de insistir. Percebendo que não teria outra opção, Gabriel aceitou levar Marcos, com a condição que ele não tocasse em nada. Quando levantaram voo, Marcos não acreditou no que viu, pois nunca havia imaginado poder voar pelo céu. Mas depois de alguns minutos, ao perceber que o balão perdia altura, se assustou:
 
– Estamos caindo, estamos caindo, vamos morrer!

Gabriel explicou calmamente que era apenas o ar do balão se esfriando, e que bastava aumentar a chama para o balão subir novamente. Porém, quando Gabriel foi aumentar a chama, viu que ela havia se apagado completamente. O ponteiro do gás mostrava que o reservatório estava vazio, e Gabriel lembrou que, por causa da insistência de Marcos, não havia checado antes da decolagem se havia gás suficiente. Ainda tentando manter a calma, Gabriel explicou a Marcos que a única coisa a fazer naquele momento era diminuir o peso do balão, jogando fora os objetos que eles tinham trazido, inclusive as coisas mais valiosas, para ajudar o balão a subir e chegar em segurança. Imediatamente Gabriel começou a jogar fora todos os seus pertences: sua mochila, sua carteira, e até mesmo os mantimentos que havia trazido. Mas para Marcos era muito difícil jogar seus pertences, e por isso ele olhou ao redor, procurando alguma outra alternativa. De repente, teve uma ideia genial:
 
– Já sei como podemos nos salvar! Se este enorme balão que está cheio de gás já não serve mais, então vamos cortar as cordas que o conectam à cesta, e assim subiremos de novo…”
 
Apesar de ser uma piada, esta história tem uma forte relação com os momentos de dificuldade que passamos na vida. Por exemplo, em épocas de dificuldade financeira, temos duas escolhas: podemos “apertar o cinto” diminuindo nossos luxos e comodidades, ou podemos cortar as doações que fazemos para os necessitados e para as instituições de Torá. Infelizmente a escolha natural é cortar as doações. Porém, deveríamos fazer justamente o contrário, pois é a bondade que fazemos ao próximo e os méritos de mantermos o estudo da Torá que podem nos ajudar a sair da crise. Quando cortamos nossos atos de bondade, nos assemelhamos àquele homem simples que, na sua ingenuidade, sugeriu cortar as cordas que amarravam a cesta ao balão.

 

Nesta semana lemos a Parashat Pekudei (que literalmente significa “contas”). O povo havia doado os materiais para a construção do Mishkan (Templo Móvel) e seus utensílios. Eram materiais caros e valiosos, como ouro, prata, cobre e tecidos. A Parashat começa justamente com a prestação de contas feita por Moshé, para justificar o uso de cada doação feita, como está escrito: “Estas são as contas do Mishkan, o Mishkan do Testemunho, que foram contadas sob o comando de Moshé” (Shemot 38:21).
 
Porém, esta prestação de contas feita por Moshé apresenta uma aparente dificuldade. De acordo com o Rav Avraham ben Meir zt”l (Espanha, 1092 – 1167), mais conhecido como Ibn Ezra, se prestarmos atenção nos versículos que descrevem a totalização das doações, perceberemos que a prestação de contas ocorreu apenas com a prata e o cobre, porém não há prestação de contas do ouro. A Torá apresenta apenas qual foi o total de ouro doado, mas não explica como ele foi utilizado, como ocorre com a prata e o cobre, cuja utilização é descrita em detalhes. Por que Moshé não se preocupou em prestar contas da utilização do ouro?
 
A resposta pode estar em uma interessante explicação do Daat Zkeinim MiBaalei HaTossafot (comentaristas da Torá que viveram na época de Rashi) trazida na Parashat Terumá, em relação às doações feitas para a construção do Mishkan. Na Parashat Terumá, a Torá também lista três metais entre os materiais que deveriam ser doados: o ouro, a prata e o cobre. De acordo com o Daat Zkeinim, cada um destes metais representa um nível de doação. O ouro representa as doações de uma pessoa que está completamente saudável, a prata representa a doação de alguém que está doente e o cobre representa a doação de alguém que já faleceu. Mas o que significa estas representações dos metais doados?
Explica o Rav Yohanan Zweig que, quando uma pessoa faz uma doação, há dois fatores a serem considerados: o impacto sobre a pessoa que abre mão dos seus recursos, e o retorno que a pessoa recebe do seu “investimento”, isto é, o que ela espera receber em troca de sua doação.
 
Quando falamos sobre alguém que doou depois do falecimento, isto representa a pessoa cuja doação não implica praticamente em nenhum perda financeira, e que é feita com o único intuito de acumular méritos para protegê-la no Olam Habá (Mundo Vindouro). Este é o nível mais baixo de doação, e é representada pela doação do cobre. Já a doação que é motivada por uma doença implica em uma certa perda de recursos, mas a pessoa faz a doação pensando no retorno do seu “investimento”, que neste caso é a recuperação da sua saúde. Este é um nível intermediário de doação, e é representada pela doação da prata. Finalmente, a doação de uma pessoa saudável, que também implica em uma perda de recursos, é o modelo da doação sincera e altruísta, pois é feita sem segundas intenções. Pelo fato da pessoa estar viva e saudável, isto demonstra que ela não está querendo nada em troca de sua doação. Este é o maior nível de doação, e é representado pela doação do ouro.
 
Mas como estes três níveis de doação explicam a falta de prestação de contas em relação às doações do ouro? Explica o Rav Yohanan Zweig que as pessoas normalmente costumam atribuir aos outros as suas próprias falhas e defeitos. O Talmud (Kidushin 70b) refere-se a este tipo de comportamento como “Kol Hapossel, Bemumó Possel”, que significa que todo aquele que enxerga um defeito no seu companheiro está simplesmente projetando no outro as sua própria deficiência. Quando nos incomoda ver em outra pessoa algum traço de caráter negativo, significa que em algum nível nós também possuímos este mesmo traço de caráter negativo. D'us criou este incrível sistema para nos ajudar, pois normalmente é mais fácil enxergar os defeitos nos outros do que em nós mesmos. Então, quando enxergamos algo negativo em outra pessoa, é um reflexo de um erro que nós mesmos também estamos cometendo e que precisamos consertar.
 
Com este conceito do Talmud podemos então entender a diferença que ocorreu na prestação de contas. Quando uma pessoa doa sem sinceridade, com segundas intenções em sua doação, então ela exigirá uma prestação de contas de como sua doação foi utilizada, pois pelo fato dela não ter doado de uma forma genuinamente altruísta, generosa e desinteressada, ela “projeta” no outro seu próprio defeito e assume que aquele que está recolhendo sua doação também está fazendo por motivos pessoais e interesseiros. Por isso, suspeitando de alguma irregularidade, ela exige uma prestação de contas completa de como sua doação foi utilizada.
 
Quando a Torá apresenta a prestação de contas das doações de prata e cobre, é porque aqueles que doaram a prata e cobre assim exigiram. Porém, pelo fato daqueles que trouxeram o ouro terem feito uma doação completamente altruísta e desinteressada, eles também não despertaram nenhuma dúvida sobre a seriedade e a motivação pura daqueles que recolheram as doações. Não foi necessário fazer nenhum tipo de prestação de contas do ouro utilizado no Mishkan e em seus utensílios, pois os doadores não exigiram.
 
Desta Parashat aprendemos duas importantes lições. A primeira é a incrível regra espiritual de “Kol HaPossel, Bemumó Possel”, isto é, toda vez que nos irritamos com os defeitos dos outros, é um sinal que nós também temos, em algum nível, exatamente os mesmos defeitos. Portanto, ao invés de tentar corrigir os outros, em primeiro lugar devemos olhar para nós mesmos e corrigir o que estamos fazendo de errado.
 
A segunda importante lição desta Parashat é em relação à pureza dos nossos atos de bondade. Muitos pensam que o importante é apenas o ato de doar, mas que as intenções pouco importam. Do Mishkan aprendemos que as intenções puras e altruístas são tão importantes quanto o ato de doação em si. A doação do ouro representa aqueles que doam com intenções puras e altruístas, e não com o desejo de receber algo em troca. Talvez é por isso que utilizamos a expressão “a pessoa tem um coração de ouro” quando nos referimos a alguém cujos atos de bondade são puros e altruístas.
 

Estamos passando no Brasil por uma crise econômica difícil. Porém, não podemos esquecer que tudo o que ocorre tem suas raízes nos mundos espirituais. Infelizmente a primeira atitude que tomamos em momentos de aperto não é cortar os nossos gastos supérfluos, e sim cortar as nossas doações, tanto para os necessitados quanto para as instituições de Torá. Mas isto é um grande erro, pois as doações e os nossos atos de bondade altruístas são justamente as atitudes que trazem méritos e que podem nos ajudar a superar as dificuldades e reverter a situação difícil. Como a pessoa em um balão caindo, para deixar de perder altura devemos jogar fora os bens “pesados”, e não cortar o próprio balão, que é a única coisa que pode nos fazer voltar a subir.  

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *

Related Articles

Back to top button