Foi em um dia qualquer, no meio do verão, na cidade de Angra dos Reis. Um lugar paradisíaco, que estamos acostumados a ver estampado nas páginas das revistas. O garoto pobre aproximou-se da mansão, colocou o rostinho entre as grades do portão alto e ficou olhando. Evelyn, a dona da casa, uma senhora distinta, regava o jardim. Fazia a tarefa devagar, como quem distribui as gotas com carinho. O menino, em seus nove anos, segurando as grades com as duas mãos, pediu:
– Ei, dona, tem pão velho?
Ela olhou surpresa. Fechou a mangueira e começou a se aproximar do garoto. Desde a sua infância aquele tipo de situação a incomodava. Trazia uma mensagem dentro de si de que, quando alguém pedia pão velho, na verdade estava dizendo: “Me dá o pão que era meu e ficou na sua casa e você esqueceu de comer porque tem muitas outras coisas deliciosas para saborear”. Ela caminhou até o portão e perguntou:
– Por que você não está na escola?
– Minha mãe não tem dinheiro para comprar o material – respondeu o garoto, com sinceridade.
Evelyn já estava tão próxima dele que quase o podia tocar. Ele tinha um rostinho tão delicado. Pena que estivesse tão sujo. Pensou nos próprios filhos, tão bem cuidados, penteados, roupas limpas, calçados brilhantes e lancheira cheia para ir para a escola. Do rostinho miúdo do garoto se destacavam os olhos. Espertos, inteligentes e sofridos.
– Seu pai mora com vocês? – arriscou Evelyn.
– Ele sumiu há muitos anos. Não sabemos onde ele está – respondeu o garoto, com voz triste.
A conversa prosseguiu. Evelyn até se esqueceu do jardim e das flores. Diante dela estava uma flor muito mais importante e com muito mais necessidades. Finalmente, Evelyn se recordou da fome do menino e, fazendo um gesto de quem se dirigia para dentro de casa a fim de buscar alguma coisa, exclamou:
– Espere um pouco, vou buscar o pão. Mas não tenho pão velho, serve novo?
– Não precisa não, a senhora já conversou comigo. Tchau – respondeu o garoto, e desapareceu ladeira abaixo.
Aquela resposta caiu como um raio no coração de Evelyn. Ela teve a sensação de ter absorvido toda a solidão e a falta de amor daquela criança. Um menino de nove anos já sem sonhos, sem brinquedos, sem comida, sem escola e tão necessitado de carinho e de uma conversa amiga. Naquele dia Evelyn aprendeu um novo significado para o pedido de pão velho. Significa “converse comigo, me dê atenção”. Por isso, ela continua dando pão novo, fresquinho. Mas, antes de tudo, compartilha o pão das pequenas conversas, um pão que nunca fica velho. O pão mata a fome do corpo, mas a palavra carinhosa nutre o coração entristecido e traz de volta a esperança de um mundo melhor.
A Parashá desta semana, Mishpatim (literalmente “Juízos”), nos ensina diversos tipos de leis, em especial as que envolvem os relacionamentos interpessoais, nos ajudando a entender o quanto a Torá é rigorosa com o nosso comportamento em relação ao nosso semelhante e o quanto devemos nos esforçar para sermos pessoas corretas e honestas. São dezenas de leis, com muitos detalhes de como devemos nos comportar mesmo nas situações difíceis que ocorrem no nosso cotidiano.
A Parashá também desperta o lado misericordioso do ser humano, ao nos ensinar leis referentes aos cuidados que devemos ter com os pobres. Por exemplo, a Torá diz que é uma obrigação emprestar dinheiro a alguém necessitado e nos ensina como fazer isso da melhor maneira, como está escrito: “Quando você emprestar dinheiro ao Meu povo, ao pobre que está com você, não se comporte com ele como um credor… se você pegar a roupa de seu companheiro como garantia, você deve devolvê-la até o por do sol. Pois esta é a sua única coberta, a veste para sua pele, com o que ele dormirá? Se ele gritar a Mim, Eu escutarei, pois Eu sou misericordioso” (Shemot 22:24-26).
Este versículo descreve detalhes importantes da Mitzvá de emprestar dinheiro a alguém necessitado. Em primeiro lugar, a Torá ressalta que não devemos nos comportar como credores, nos ensinando que quando uma pessoa não tem condições de devolver o empréstimo na data combinada, não devemos pressioná-la. Devemos deixá-la à vontade, para que ela não se sinta humilhada toda vez que nos encontrar. Além disso, a Torá nos ensina que o devedor deve deixar um objeto como garantia, para caso não consiga pagar sua dívida. Porém, se a pessoa for tão pobre que este objeto de garantia for algo que ela precisa para o seu dia-a-dia, como a roupa que ela veste para dormir, então devemos constantemente devolvê-lo, para que a pessoa possa utilizá-lo sempre que necessário.
Mas o que realmente nos chama a atenção são as palavras finais do versículo: “Se ele gritar a Mim, Eu escutarei, pois Eu sou misericordioso”. Aparentemente a Torá está deixando claro que, caso o credor não devolva o objeto de garantia para o devedor quando este necessitar, causando com que o devedor grite desesperadamente para D'us, então Ele escutará e castigará o credor. Porém, o credor cometeu alguma transgressão somente por ter pressionado o devedor, retendo o objeto de garantia? O credor fez a sua parte e emprestou seu dinheiro. O grito é apenas entre o devedor e D'us, pois o credor não tem culpa do devedor não ter dinheiro para pagar suas dívidas. Então por que o versículo dá a entender que o credor será castigado caso pressione o devedor?
De acordo com o Rav Ovadia Sforno zt”l (Itália, 1475-1550), após escutar o grito do pobre, D'us fala para o credor: “Quando o pobre grita para Mim, Eu darei a ele um pouco do que teria dado a você, pois Eu dou a você mais do que você precisa justamente para que você possa ajudar a sustentar os outros”. Isto quer dizer que D'us deveria mandar para cada ser humano exatamente o que ele precisa para as suas necessidades básicas, como ocorria no deserto, quando o “Man” caía diariamente e cada um recebia exatamente a quantidade que necessitava para sua alimentação diária. Porém, olhamos para o mundo e vemos que a distribuição das riquezas não é igual. Para alguns D'us manda “a mais”, enquanto para outros D'us manda “a menos”. Devemos ter a claridade de que quando recebemos “a mais”, isto não é para nós mesmos, para os nossos luxos, e sim para podermos ajudar a sustentar outras pessoas. É por isso que o versículo utiliza as palavras “Eu escutarei”, pois D'us escutará que o credor tem mais do que precisa para suas próprias necessidades e, mesmo assim, fica pressionando o devedor, que tem menos do que precisa. Qual será a consequência? D'us tirará o dinheiro do credor e dará ao devedor.
Este conceito foi ensinado pelo mais sábio dos homens, Shlomo Hamelech (Rei Salomão): “O rico e o pobre serão visitados. D'us é quem faz todos eles” (Mishlei 22:2). O Talmud (Temurá 16a), ao explicar este versículo, relata o que acontece quando um pobre se dirige a um rico e pede “por favor, me ajude no meu sustento”. Caso o rico o ajude, então está tudo bem, mas caso o rico não o ajude, sofrerá consequências. “D'us é quem faz todos eles” significa que, da mesma forma que D'us fez a pessoa ficar rica, então Ele fará esta pessoa empobrecer, e da mesma forma que D'us fez a outra pessoa ser pobre, Ele a fará enriquecer.
Mas será que isto realmente pode acontecer? A pessoa rica já tem muito dinheiro acumulado, enquanto o pobre não tem nada! Como pode ser que esta situação vai se inverter? Estamos tão imersos nas ideias equivocadas do mundo material que nos esquecemos de que as regras espirituais são diferentes do que os nossos olhos enxergam. D'us recria tudo a todo instante. O que a pessoa tem neste momento não diz nada em relação ao que vai ocorrer em um próximo momento. Nada é garantido, pois se D'us não recriar a riqueza do rico, no próximo instante ele estará completamente pobre. Portanto, D'us, que controla tudo, pode fazer o rico perder tudo e o pobre enriquecer da noite para o dia.
O mesmo conceito também se aplica em relação aos assuntos espirituais. Assim nos ensina Shlomo Hamelech: “O pobre e o homem de pensamentos profundos são visitados. D'us é quem ilumina os olhos dos dois” (Mishlei 29:13). O Talmud (Temurá 16a) explica que este versículo se refere a um aluno que vai ao seu professor e pede “por favor, me ensine Torá”. Caso o professor o ensine, então está tudo bem, pois D'us iluminará os olhos dos dois, tanto do professor quanto do aluno. “Pobre”, neste caso, se refere ao aluno, alguém ainda pobre em Torá. “Homem de pensamentos profundos” se refere ao professor, neste caso alguém que já tem bastante conhecimento, mas que ainda precisa crescer muito espiritualmente. Caso o professor aceite dedicar parte do seu tempo para ensinar ao seu aluno, abrindo mão do seu próprio tempo de estudo, então D'us iluminará os olhos dos dois. O professor não perderá nada, ao contrário, ganhará conhecimento e sabedoria junto com o aluno.
Porém, o Talmud continua explicando que, caso o professor se recuse a ensinar seu aluno, preferindo dedicar seu tempo apenas ao seu próprio crescimento em Torá, então D'us, quem transformou aquela pessoa em um sábio, pode transformá-lo em um grande tolo, enquanto aquele que foi criado tolo pode se transformar em um sábio. Quando alguém não é misericordioso e se recusa a dividir o que recebeu “a mais”, D'us o castiga e retira dele parte do seu dinheiro e dá ao pobre. O mesmo acontece com aquele que se recusa a ensinar seu companheiro, ele é castigado e perde parte de sua sabedoria, que é dada àquele que quer aprender. É como se D'us estivesse dizendo: “Eu te dei condições financeiras, Eu te dei sabedoria e força para você poder ensinar também aos outros, então por que você quer pegar tudo apenas para você mesmo? Você acha que tem algo? Quem deu tudo isto a você fui Eu. E como a cada momento Eu renovo o que Eu dou para as pessoas, a partir deste momento eu deixarei de dar para você e começarei a dar para ele”.
Este é um grande ensinamento para conseguirmos vencer o nosso egoísmo. Vivemos com excessos e luxos, enquanto muitas pessoas não têm nem mesmo o básico. E o pior de tudo é que não nos importamos com os outros. Não apenas não repartimos a parte “a mais” do nosso dinheiro, como também não dedicamos nem mesmo o nosso tempo aos outros, para ensinar algo ou simplesmente para dar atenção a quem necessita. Precisamos lembrar que tudo o que temos é por bondade de D'us, mas se não soubermos utilizar o que recebemos, podemos perder tudo. A palavra “Tzedaká” normalmente é traduzida como “caridade”, mas a tradução literal é “justiça”. Quando ajudamos alguém que tem menos do que nós não estamos apenas fazendo caridade, estamos fazendo justiça. Este “a mais” somente veio até nossas mãos para podermos ter o mérito de ajudar os outros e, assim, criar um mundo mais justo.
SHABAT SHALOM
R' Efraim Birbojm