“Pedrinho contava os dias para as férias de janeiro, pois iria para um acampamento junto com seus colegas de escola. Sua mãe o ajudou a fazer as malas e, muito prevenida, fez uma lista com todos os pertences do filho.
Após um mês bem aproveitado de férias, Pedrinho voltou para casa. A mãe começou a desfazer as malas, conferindo na lista se todas as roupas que ela tinha mandado haviam voltado. Ela notou que faltava uma toalha. Perguntou a Pedrinho se ele havia esquecido em algum lugar, mas ele respondeu que não se lembrava de ter deixado em nenhum lugar. Furiosa, a mãe telefonou para o dono do acampamento e desabafou:
– Eu mandei com meu filho uma toalha, mas ela não voltou. Onde está a toalha? Eu a trouxe dos Estados Unidos da última vez em que estive lá e agora a toalha desapareceu. Vocês são uns ladrões!
O dono do acampamento tentou acalmar a senhora, argumentando que talvez o filho tivesse esquecido na piscina ou emprestado para um amigo, mas ela não escutava. Cansado da discussão, o homem disse:
– Minha senhora, não vou passar o dia inteiro discutindo por causa de uma toalha. Descreva-me como era a toalha e eu tentarei comprar outra igual.
– Está bem – disse a mulher, um pouco mais calma – a toalha era branca, grande e bem felpuda, e nela estava escrito 'Hotéis Hilton'…”
Se os outros pegam nossas coisas nós chamamos de roubo, mas se pegamos a toalha do hotel, é apenas uma “lembrancinha de viagem”. Quando não seguimos um sistema de valores fixo e imutável, nossos interesses acabam virando lei.
A história do povo judeu sempre foi repleta de momentos difíceis. Os egípcios nos escravizaram, os babilônios nos exilaram, os romanos nos perseguiram, os portugueses e espanhóis nos expulsaram, os cossacos russos tentaram nos dizimar. No final da Parashá desta semana, Ki Tetse, a Torá nos ensina sobre outro povo que também nos fez muito mal: o povo de Amalek, que nos atacou por trás, de forma covarde, enquanto estávamos no deserto. A Torá vai além e nos comanda a nunca mais esquecer o que eles nos fizeram, como está escrito: “Lembra o que Amalek te fez em teu caminho de saída do Egito. Quando eles te encontraram no caminho, e você estava cansado e exausto, eles extirparam aqueles que ficaram para trás, e eles não temeram a D'us” (Devarim 25:17,18). Mas se tantos povos nos fizeram tão mal durante a história, por que a Torá é tão rigorosa com o povo de Amalek? E por que a Torá ressalta que eles não tiveram temor a D'us?
A resposta está em um interessante ensinamento da Torá. O Talmud (parte da Torá Oral) ensina que há dois tipos diferentes de crime: o roubo e o furto. O roubo é quando o ladrão se apropria de um objeto alheio durante o dia, isto é, enfrentando a vítima cara a cara. O furto é quando o ladrão se apropria de um objeto alheio na calada da noite, isto é, sem que a vítima perceba que está sendo roubada. Aparentemente o roubo parece ser mais violento e, portanto, mais grave. Mas o Talmud nos ensina justamente o contrário. Se uma pessoa acusada de roubo é levada ao tribunal e condenada, ela deve pagar exatamente o que roubou. Mas se uma pessoa acusada de furto é condenada, ela precisa pagar o dobro do valor que furtou. Por que a Torá castiga mais duramente o furto do que o roubo? Pois quando uma pessoa rouba à luz do dia, ela demonstra que não tem medo de nada, nem de D'us e nem das pessoas. Já quando uma pessoa furta na calada da noite, ela demonstra que tem medo das pessoas mas não tem medo de D'us.
Mas ainda fica uma dúvida. Na verdade, quem deveria ser punido com mais rigorosidade é quem rouba, pois ele é o pior elemento, ele não tem medo de ninguém. O livro “Lekach Tov” traz uma resposta impressionante. Quando um ladrão rouba à luz do dia, ele não faz cálculos, ele age de acordo com seus instintos e desejos, sem muito planejamento. O ladrão que furta, ao contrário, é mais cuidadoso com seus atos e planeja cada um dos seus passos, pois leva em consideração a possibilidade de ser pego em flagrante. Portanto, o ladrão que roubou não obrigatoriamente perdeu seu temor a D'us, pois ele agiu por instinto, de forma impensada e impulsiva. Já o ladrão que furtou demonstra que fez o mau ato de forma premeditada. Se teve cabeça para parar e planejar, por que não aproveitou suas reflexões para entender que o que estava se preparando para fazer era errado? Como ele não fez por impulso, demonstrou claramente que não teve nenhum temor a D'us.
Este é o motivo pelo qual a Torá é mais rigorosa com Amalek do que com outros povos. Os outros povos nos atacaram por impulso, sem premeditação, e por isso não demonstram tão claramente a falta de temor a D'us. Já Amalek não nos atacou por impulso. Eles premeditaram o ataque, eles esperaram o momento certo, como está escrito: “você estava cansado e exausto”, isto é, por muito tempo eles aguardaram a hora certa de nos atacar para nos exterminar. Tantas reflexões evidenciam que eles não tinham nenhum temor a D'us.
Como a Torá nos ensina a identificar um povo que não tem temor a D'us? A Torá conta que quando Avraham Avinu esteve na terra dos Plishtim, sua esposa Sara foi levada à força para se casar com o rei Avimelech, que achava que ela era apenas a irmã de Avraham. D'us mandou uma praga para Avimelech, apareceu para ele em um sonho e exigiu que Sara fosse devolvida. Quando Avimelech questionou Avraham por que ele não havia contado que Sara era sua esposa, ele respondeu: “pois eu pensei que somente temor a D'us não há neste lugar, e eles me assassinariam por causa de minha esposa” (Bereshit 20:11). Como Avraham sabia que não havia temor a D'us na terra dos Plishtim? Avraham viu que as pessoas daquele lugar não seguiam as leis criadas por D'us, eles criavam suas próprias leis, de acordo com seus interesses. Como Sara era muito bonita, ele teve medo que alguém tentaria matá-lo para se casar com ela, pois o adultério era proibido, mas as pessoas dariam um “jeitinho” para contornar as leis locais e alcançar seus desejos.
Quem também mostrou uma falta total de temor a D'us foram os alemães na época do Holocausto. Muitos sábios afirmavam, antes mesmo do Holocausto, que os alemães eram descendentes de Amalek. E podemos enxergar nos alemães um comportamento muito semelhante ao que observamos em Amalek na Torá. Eles não apenas odiavam os judeus, eles não estavam motivados por um impulso. Eles eram metódicos e racionais. Eles investiram para aprimorar a forma de exterminar os judeus. Por um lado eles eram extremamente racionais e lógicos, mas por outro lado demonstraram que não tinham nenhum medo de D'us.
Steven Spielberg, em seu filme “A Lista de Schindler”, ressaltou a falta de temor a D'us dos alemães. Em uma cena, enquanto os nazistas entravam em um edifício para friamente assassinar homens, mulheres e crianças, dois oficiais nazistas escutaram um terceiro oficial que havia se sentado ao piano e tocava uma música clássica. Imediatamente os dois oficiais pararam a matança para discutir se era Bach ou Beethoven. Qual a mensagem que Spielberg quis transmitir? Que uma pessoa pode ser culta e inteligente, mas sem temor a D'us pode acabar se comportando como um animal. As leis alemãs ensinavam a ser educado, fino, culto, mas não ensinavam a não assassinar inocentes. Da cabeça de Hitler (que sua lembrança seja apagada) veio a idéia da eutanásia. Quando subiu ao poder, em 1933, ele vendeu ao povo alemão a idéia de assassinar inválidos e loucos por “bondade”. Qual era a fonte desta idéia? A falta de temor a D'us, o mesmo D'us que nos ensinou a santidade de uma vida, que não pode ser tirada por nenhum outro ser humano. Por que a grande maioria dos alemães aceitou passivamente o assassinato de 6 milhões de judeus? Pois como as leis eram adaptáveis, eles conseguiam entender que matar seres humanos era proibido, mas matar judeus, seres que atrapalhavam a economia alemã, era aceitável. A falta de temor a D'us não estava apenas naqueles que assassinaram, mas também naqueles que assistiram passivamente e aceitaram.
Infelizmente também vivemos em uma sociedade sem temor a D'us. Também discutimos e criamos leis de acordo com os nossos próprios interesses. Lutamos pela permissão do aborto mesmo para casos onde o motivo é fútil, como por exemplo mães que engravidaram sem planejamento e acham que a vinda de um filho estragaria seus planos de crescimento na carreira. Quanto dinheiro vale uma vida? De onde vem o direito de criar leis para discutir quem merece e quem não merece viver? Da nossa falta de temor a D'us.
Recebemos no Monte Sinai a Torá, que nos ensina leis que levam em consideração não apenas o nosso corpo, mas também a nossa alma. São leis que não se “modernizam” com o tempo, pois a alma não se moderniza, a alma não muda. Há 3.300 anos o valor de uma vida não tinha preço e continua não tendo. Qualquer forma de encurtar uma vida é inaceitável segundo o judaísmo. Sem temor a D'us, podemos estar cometendo atos bárbaros achando que estamos sendo bondosos. Sem temor a D'us reclamamos quando somos assaltados, mas levamos a toalha do hotel como lembrança. Somente com temor a D'us nos tornaremos pessoas cada vez melhores de verdade.
SHABAT SHALOM
“SHETICATEV VETECHATEM BESSEFER CHAIM TOVIM” (QUE SEJAMOS INSCRITOS E SELADOS NO LIVRO DA VIDA).
Rav Efraim Birbojm