“Aharon era um aluno esforçado, mas para ele o estudo de Torá parecia muito difícil e pesado. Ele estudava, demorava para entender, e logo esquecia o que havia aprendido. Desanimado, foi questionar ao rabino:
– Por que devemos estudar Torá, se é tão difícil entender? E mesmo quando conseguimos entender, com o passar do tempo acabamos esquecendo tudo! Isto não é um esforço em vão?
O rabino escutou com atenção a pergunta, mas não respondeu imediatamente. Ficou olhando para o horizonte por alguns instantes e depois pediu para Aharon:
– Por favor, você poderia pegar aquele cesto de junco, descer até o riacho e encher o cesto de água para mim?
O discípulo olhou para o cesto, cheio de furos e completamente sujo, e achou muito estranho o pedido do rabino. Apesar disso, ele obedeceu. Pegou o cesto, desceu a enorme escadaria que levava até o riacho, encheu o cesto de água e começou a subir de volta. Como cesto era furado, a água foi escorrendo. Quando Aharon chegou até o rabino, já não restava quase nada de água. O rabino perguntou o que ele havia aprendido com aquela atividade. Aharon olhou para o cesto quase vazio e disse, de forma debochada, que a única coisa que ele havia aprendido era que um cesto de junco não servia para carregar água. O rabino pediu a Aharon que repetisse o processo de novo. Quando Aharon voltou com o cesto novamente quase vazio, o rabino outra vez perguntou o que ele havia aprendido. Aharon, já um pouco irritado, novamente respondeu com sarcasmo que um cesto furado não servia para carregar água. O rabino, sem se alterar, continuou pedindo que Aharon repetisse a tarefa, e Aharon continuou dando sempre a mesma resposta. Depois da décima vez, Aharon estava completamente exausto de tanto descer e subir as escadas. Desta vez, quando o rabino perguntou o que ele havia aprendido, Aharon olhou por alguns instantes para o cesto, refletiu e percebeu, admirado, que o cesto estava completamente limpo. Apesar do cesto não segurar a água, a repetição do ato de tentar enchê-lo acabou lavando o cesto completamente. O rabino, satisfeito, concluiu:
– Mesmo que você demore a aprender e não consiga decorar tudo o que estuda na Torá, saiba que este processo de esforço no estudo vai limpando aos poucos o seu corpo e a sua alma. Mesmo que não conseguimos enxergar, cada palavra de Torá que estudamos nos purifica e nos aproxima um pouco mais de D'us”.
Conhecemos os efeitos positivos da Torá para nossa alma infinita. Mas esquecemos que a Torá também ajuda a purificar o nosso corpo e a nos conectar, mesmo estando em um mundo físico, a uma realidade espiritual.
Na Parashá desta semana, Re'eh, a Torá traz assuntos extremamente importantes para a nossa vida: os “Shalosh Regalim” (três vezes no ano em que todos os homens tinham a obrigação de ir ao Beit Hamikdash – Pessach, Shavuót e Sucót), a nossa obrigação de cuidar dos pobres e necessitados, e as leis de Kashrut. Além disso, a Torá traz uma série de leis que se aplicam ao nosso cotidiano.
Uma das leis trazidas nesta Parashá nos chama a atenção: “Vocês são filhos de Hashem, teu D'us. Não causem cortes sobre vocês” (Devarim 14:1). O versículo está nos ensinando que uma pessoa, diante da perda de um parente próximo e querido, não pode se desesperar ao ponto de causar feridas em seu próprio corpo. Mas por que antes de a Torá nos ensinar esta proibição de se autoflagelar, o versículo escreve “vocês são filhos de D'us”? Explica Rashi (França, 1040 – 1105) que não devemos desfigurar nosso corpo justamente por sermos filhos de D'us. Por isso, é apropriado que cuidemos bem do nosso corpo para mantê-lo com uma boa aparência.
Porém, esta explicação de Rashi é aparentemente contraditória com um ensinamento do Talmud (Nidá 31a), que afirma que há três sócios na criação do ser humano: o pai, a mãe e D'us. Enquanto os pais provêm à criança suas características físicas, D'us provê à criança uma alma. Então por que este versículo descreve nossa relação com D'us como sendo “filhos” em um contexto de cuidar do nosso corpo, e não da nossa alma?
Além disso, o Talmud (Yevamot 13b) aprende das palavras “não causem cortes” outro ensinamento. É proibido, em uma mesma comunidade, as pessoas se dividirem em “facções” e cumprirem as Halachót (leis judaicas) de forma divergente, dando a impressão que existem várias Torót, e não apenas uma Torá para todo o povo judeu. Mas por que ambos os ensinamentos derivam do mesmo versículo? Qual é a conexão entre não causar cortes no corpo e não dividir o povo em facções que cumprem a Halachá de maneira divergente?
Explica o Rav Yohanan Zweig que a resposta está no “Shemá Israel”, onde nós somos comandados a ensinar Torá aos nossos filhos, como está escrito: “E ensinem aos seus filhos” (Devarim 6:7). Rashi comenta que a linguagem “seus filhos” se refere, na verdade, aos seus alunos, pois os alunos de uma pessoa são considerados como se fossem seus filhos. Para dar suporte à sua opinião, Rashi menciona justamente o versículo da nossa Parashá, “vocês são filhos de D'us”. Através deste comentário de Rashi no “Shemá Israel” podemos entender que ele opina que através do estudo da Torá de D'us nos tornamos “Seus alunos” e, portanto, podemos ser chamados de “Seus filhos”.
O Talmud (Baba Metsia 33a) ressalta ainda mais esta elevação que o estudo de Torá traz ao ser humano. Existe a Mitzvá de “Ashavat Aveidá”, que cumprimos ao devolver um objeto perdido ao seu dono. O Talmud nos ensina que, quando uma pessoa está diante de um objeto perdido de seu professor de Torá e um objeto perdido de seu pai, ela está obrigada a devolver primeiro o objeto ao seu professor de Torá e somente depois ao seu pai. Mas por que devemos devolver nesta ordem, que aparentemente vai contra a nossa lógica? O pai, a pessoa que nos deu a vida, não deveria ter a prioridade?
O Talmud traz uma justifica incrível. O pai dá ao filho apenas uma existência física e finita no mundo material, enquanto o professor que ensina Torá dá ao seu aluno, além de uma existência infinita para sua alma no Mundo Vindouro, também uma elevação para o corpo físico dado por seu pai. Quando uma pessoa consegue elevar seu corpo material, ela passa de uma existência física e finita a um estado espiritual eterno. Obviamente que temos uma enorme obrigação de honrar nossos pais e demonstrar eterna gratidão por tudo o que eles fizeram e fazem por nós, mas o Talmud deixa claro que aquele que nos ensina Torá “completa” o que nossos pais nos deram, ao nos ajudar a transformar um corpo que era apenas físico em algo repleto de espiritualidade.
Com este conceito podemos entender qual é a relação entre não dilacerar o corpo e o fato de sermos “filhos de D'us”. O corpo e a alma foram criados com naturezas opostas. Enquanto a alma busca naturalmente a conexão com D'us e a espiritualidade, o corpo busca naturalmente a conexão com os prazeres materiais, dando a impressão de que vieram de fontes diferentes. Porém, embora o Talmud afirme que D'us é a Fonte da nossa alma, enquanto os pais são a fonte do nosso corpo, o estudo da Torá permite que o corpo se eleve e também possa ser percebido como um produto da mesma Fonte Divina, isto é, que deixa de ser algo apenas material e seja visto como algo espiritual e infinito. Por isso, aquele que quer se comportar como “filho de D'us” deve se esforçar para que seu corpo, que também demonstra a grandeza de D'us, seja cuidado da maneira correta. Cuidar do corpo, neste caso, é uma forma de ressaltar ainda mais a Divindade que está por trás da Criação do ser humano, tanto fisicamente quanto espiritualmente.
Quando conseguimos alcançar a reconciliação entre o corpo e a alma, damos a maior prova de que tudo vem de uma única Fonte. Mas como podemos fazer esta reconciliação? Como criações com naturezas tão opostas podem trabalhar juntas? A única “ferramenta” capaz de realizar esta reconciliação é a Torá, que nos ensina a como canalizar os prazeres físicos para um propósito espiritual. E pelo fato de a Torá ser a única “ferramenta” que faz esta reconciliação, é muito importante que ela seja vista também como vinda de uma única Fonte. Qualquer ação que venha distorcer esta verdade debilita a eficácia da Torá em unir e reconciliar todas as aparentemente divergentes forças da Criação. É por isso que deste mesmo versículo o Talmud aprende a grave proibição de se formarem facções separadas que, na mesma comunidade, cumprem a Halachá de forma divergente, pois isto destrói o espírito de união da Torá.
Realmente o estudo da Torá é difícil, e guardar seus conhecimentos exige muita dedicação, Chazarót (revisões) constantes e concentração. Estudar Talmud, por exemplo, é um grande desafio ao nosso intelecto. Porém, um dos efeitos mais importantes do nosso estudo de Torá é a purificação que ele traz para a nossa alma e para o nosso corpo. Estamos sempre tão conectados com os nossos desejos que esquecemos que é necessário canalizar também a parte material para o lado espiritual. Às vezes esquecemos que devemos ser espirituais também fora da sinagoga, mesmo nos menores e mais simples atos do cotidiano. O estudo da Torá nos ajuda, pois ao purificar nosso corpo e nossa alma, nos conecta com o espiritual mesmo nas atividades mais mundanas. Pois a mesma Fonte que criou a nossa alma também criou o nosso corpo, para que juntos, corpo e alma, possamos nos elevar e atingir a perfeição.
SHABAT SHALOM
R' Efraim Birbojm