Enganando a si mesmo

Este é o “testamento ético” que um médico escreveu antes do seu falecimento, na expectativa de transmitir aos seus filhos os ensinamentos que ele aprendeu na vida:
 
“Meus queridos filhos, quando eu me formei na faculdade de Medicina, a minha grande ambição era me dedicar à pesquisa na área médica e descobrir a cura para uma grande enfermidade. Eu sentia que tinha o talento e as habilidades necessárias para fazê-lo e queria fazer algo grandioso, algo importante, que melhoraria a saúde de inúmeras pessoas e prolongaria suas vidas. Eu queria ser médico no sentido literal da palavra. Mas eu também queria ter segurança financeira. Eu não queria me preocupar com as contas e com o financiamento de uma casa. Eu queria dar um padrão de vida confortável para a sua mãe. Então eu decidi abrir um consultório em um bairro de classe alta e praticar aí medicina durante dez ou quinze anos. Eu ganharia muito dinheiro e me aposentaria. Depois, eu estaria livre para dedicar a minha vida à pesquisa.
 
O que eu posso lhes dizer, meus filhos queridos? Vocês sabem o resto da história. A minha clínica foi muito bem-sucedida e eu ganhei muito dinheiro. Eu sempre adiava a minha aposentadoria para ganhar ainda mais dinheiro. Um ano se passou, depois outro e outro. Antes que eu me desse conta, eu passei os melhores anos da minha vida acumulando uma grande fortuna. E o meu sonho de encontrar uma cura? Eu sinto dizer que ele simplesmente continuou sendo isto: um sonho não realizado. Eu desperdicei os melhores anos da minha vida. Eu desperdicei os meus melhores talentos. Eu desperdicei uma oportunidade de ganhar a imortalidade. E tudo isto pelo quê? Por um pote de ouro.
 
O pior de tudo é que, olhando para trás, a sua mãe teria me apoiado na minha decisão de fazer pesquisa. Eu dizia para mim mesmo que eu fazia isto para dar a ela o padrão de vida que ela merecia, mas eu sabia que ela teria concordado em ter um padrão de vida mais simples, que ela teria me estimulado a perseguir os meus objetivos se eu tivesse pedido a ela.
 
Meus filhos queridos, o que eu posso dizer? O pote de ouro eu deixo para vocês. Deve ser suficiente para lhes libertar das preocupações financeiras. Não cometam o meu erro. Não passem as suas vidas preciosas enchendo o pote de ouro”.
 
Explica o Rav Yssocher Frand que, após muitos anos de trabalho árduo, este médico compreendeu que desperdiçou décadas da sua vida na busca por riqueza material. Um tempo que poderia ter sido passado com a família ou na busca de ideais nobres foi direcionado na busca interminável por dinheiro. E este tempo nunca voltará…

Nesta semana lemos a Parashat Behar (que literalmente significa “No Monte”). A Parashat começa descrevendo uma Mitzvá difícil de ser cumprida, e que tem um grande impacto na forma como nos relacionamos com D'us e como enxergamos o nosso trabalho neste mundo: a Mitzvá de “Shemitá” (Ano Sabático), que se aplica apenas às terras de Israel. Durante seis anos o povo judeu pode arar o campo, semear, irrigar e colher o produto do seu esforço. Porém, no sétimo ano, o ano de Shemitá, o povo judeu não pode arar, plantar e nem mesmo ter proveito financeiro dos frutos do seu campo. As portas de todos os campos devem ser abertas, para que os pobres e todos que tiverem vontade possam comer livremente das frutas. Isto nos ensina que o verdadeiro provedor de tudo o que temos é D'us, pois apesar de passarmos um ano inteiro sem cultivar o campo e sem vender as frutas, nunca faltou sustento ao povo judeu no ano de Shemitá em mais de 3.000 anos. A Torá inclusive nos garante que não apenas não haverá fome, mas também haverá uma grande abundância, como está escrito: “E Eu comandarei a Minha Benção para vocês no sexto ano, e a produção será equivalente a três anos” (Vayikrá 25:21).
 
Porém, o Talmud (Kidushin 20a) descreve as terríveis consequências àquele que não cumpre a Mitzvá de Shmitá e busca lucros com a venda de produtos agrícolas durante o sétimo ano. O Talmud também ressalta que a severidade dos castigos vai aumentando progressivamente caso a pessoa persista na transgressão. Por exemplo, aquele que desrespeitou as leis de Shmitá inicialmente começará a perder seus lucros, precisando vender seus móveis e outros objetos de sua casa para se sustentar. Posteriormente ela acabará sendo obrigada a vender até mesmo a terra que herdou de seus antepassados. As consequências dos seus atos vão aumentando em severidade, até que a pessoa se vê obrigada a se vender como escrava para fazer serviços em um templo de idolatria.

O Talmud ressalta que a razão pela qual as consequências se tornam mais severas é porque a pessoa não abandona a transgressão nem ao perceber os castigos que está recebendo. Por que a pessoa não se arrepende? Pois quanto mais a transgressão fica profundamente enraizada dentro do transgressor, é menos provável que ele sinta remorso por seus erros, como afirma o Talmud: “Quando uma pessoa repete o seu delito, ele torna-se permitido aos seus olhos”.
 
Mas por que o Talmud resolveu transmitir este ensinamento justamente associado à Mitzvá de Shemitá, se isto se aplica a qualquer transgressão da Torá? Explica o Rav Yohanan Zweig que, para responder esta pergunta, antes precisamos entender o que leva alguém a desrespeitar a Mitzvá de Shemitá. A motivação mais óbvia seria o medo de não conseguir sustento no sétimo ano. Mas esta é uma motivação sem sentido, pois D'us prometeu abundância para todos aqueles que cumprirem a Mitzvá de Shemitá, garantindo que nada faltará para eles. E isto pôde ser verificado nos últimos três mil anos, quando o povo judeu cumpriu a Mitzvá e nada faltou. Então qual é a motivação verdadeira que leva alguém a transgredir esta Mitzvá?
 
A Torá nos ensina que “o ser humano foi criado para trabalhar” (Yov 5:7). Isto significa que o ser humano somente consegue se preencher através do seu esforço e de suas realizações. Por isso, o ser humano acaba se definindo justamente pelas ações através das quais ele busca seu preenchimento. Em condições ideais, o ser humano deveria receber esta sensação de preenchimento através dos seus esforços no serviço Divino. Porém, na maioria das vezes, a pessoa acaba se definindo de maneira completamente equivocada, através do produto do seu trabalho profissional. É por isso que uma das depressões que mais atingem a humanidade está relacionada justamente com a época em que as pessoas se aposentam. Como elas sentem que seu valor está diretamente ligado à sua produção profissional, a aposentadoria representa o fim do valor da pessoa e, por isso, muitos passam por sofrimentos psicológicos profundos quando param de trabalhar.
 
Com este conceito fica mais fácil entender a motivação por trás de quem transgride a Mitzvá de Shemitá. Aquele que trabalha com agricultura acaba se identificando com este trabalho da terra como se fosse parte da sua própria essência. Por isso, não é uma opção desejável ficar um ano inteiro parado, sem produzir nada, pois isto traz para a pessoa uma sensação de vazio existencial. Por outro lado, como a pessoa vê sua essência como uma consequência de seus atos, então fazer uma transgressão de maneira aberta e descarada também causaria na pessoa a mesma sensação de vazio, pois o definiria como sendo um transgressor. A única forma de fugir deste paradoxo é a pessoa racionalizar seus atos e procurar desculpas para encobrir sua transgressão, como assumir que está trabalhando por causa do medo de não ter sustento. Desta maneira, a pessoa pode se sentir tranquila, trabalhando na terra durante o sétimo ano, que é o que define a sua essência, e ao mesmo tempo sentindo que não está fazendo nada de errado.
 
Quando a pessoa se esforça para encobrir seus erros buscando racionalizações, normalmente ela entra na regra de “quando uma pessoa repete o seu delito, ele torna-se permitido aos seus olhos”. Com isso a pessoa acaba se afundando cada vez mais na transgressão e se tornando cada vez mais insensível às consequências espirituais negativas. É por isso que a Shemitá é o cenário ideal para ensinar este conceito, pois justamente a racionalização dos erros é o que está por trás da transgressão da Shemitá. O medo de não ter sustento, apesar de D'us ter garantido que nada faltará, é apenas uma “justificativa racional” para tirar o peso na consciência da pessoa.
 
Desta Parashat ficam dois ensinamentos muito importantes. Em primeiro lugar, aprendemos que o nosso verdadeiro valor não deve ser definido através de nossos empregos e formação profissional. Não somos engenheiros, advogados ou médicos, somos seres humano, e temos dentro de nós uma alma eterna, que deseja cumprir sua missão e se conectar com D'us. Podemos gostar do que fazemos, mas nossas profissões devem ser vistas apenas como uma forma de termos o nosso sustento, de podermos ter a tranquilidade material suficiente para nos permitir fazermos o nosso serviço espiritual, e não como nossa meta na vida. Nosso valor verdadeiro é medido de acordo com o quanto estamos próximos do nosso preenchimento espiritual, que é o verdadeiro motivo pelo qual D'us nos colocou neste mundo. Os lucros que tivemos na empresa e o sucesso profissional não servirão para nada quando terminar o nosso tempo neste mundo. O que ficará para sempre serão as nossas bondades, as nossas contribuições para a humanidade. Não precisam ser atos grandiosos, pois mesmo pequenos bons atos ajudam a iluminar o mundo, e cada luz acesa com uma Mitzvá nunca mais se apagará.

Em segundo lugar, aprendemos o quanto precisamos ser sinceros com nossas atitudes na vida. D'us sabe quais são as nossas verdadeiras intenções, e Ele sabe quando estamos apenas buscando racionalizações e justificativas para os nossos erros. Na vida podemos enganar as outras pessoas, podemos até mesmo conseguir enganar a nós mesmos, mas nunca conseguiremos enganar a D'us, que enxerga até cada pequena vontade do nosso coração.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm

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