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Enxergando o quadro completo

Amy Carmichael nasceu em uma pequena vila na Irlanda do Norte. Era a mais velha de sete filhos. Todos na casa de Amy tinham olhos azuis. Todos, menos Amy. O sonho dela era ter olhos azuis como o mar. Certo dia ela escutou que D'us responde a todas as rezas e passou o dia todo pensando nisso. À noite, na hora de dormir, ela rezou muito. Pediu que, quando acordasse, tivesse olhos azuis como os de sua mãe. Ao acordar no dia seguinte, a primeira coisa que Amy fez foi correr para o espelho. Mas, para seu desapontamento, viu que seus olhos continuavam castanhos. Sua mãe veio consolá-la e ensinou-lhe que D'us escuta todas as rezas, mas o “não” também é uma resposta, pois somente Ele sabe o que é o melhor para nós. Amy não entendia por que D'us não atendeu sua reza, mas confiava Nele.

Amy cresceu e estava sempre ajudando as pessoas, mas era uma candidata improvável para trabalhos de caridade, pois sofria de neuralgia, uma doença dos nervos que deixava seu corpo fraco, dolorido e que a deixava de cama por semanas. Mesmo assim Amy foi trabalhar na Índia. Havia escutado que famílias pobres, em momentos de desespero, vendiam seus filhos para a prostituição forçada. Amy começou a trabalhar ativamente para “comprar” estas crianças e dar a elas uma vida digna.

Para poder circular na Índia e comprar crianças sem ser reconhecida como estrangeira, Amy precisou se disfarçar de indiana. Ela passava pó de café para escurecer sua pele, cobria os cabelos e se vestia como as mulheres locais. Assim, ela podia entrar e sair livremente nos locais de venda de crianças sem chamar a atenção de ninguém. Um dia, uma amiga olhou para ela disfarçada e disse:
 
– Puxa, Amy, você já pensou como seria difícil você se disfarçar se tivesse olhos azuis como sua família?
 
Naquele momento Amy entendeu a grandeza de D'us. Ele havia lhe dado olhos bem escuros, pois sabia que isto seria essencial para a sua missão de vida.
 
Amy montou uma instituição chamada “Dohnavur Fellowship”, situada em Tamil Nadu, no sul da Índia. O local tornou-se um orfanato que abrigou e salvou centenas, talvez milhares, de crianças “compradas”, dando a elas um futuro. Amy Carmichael morreu na Índia, em 1951, aos 83 anos de idade. (História real) 

 

Nesta semana lemos a Parashá Lech Lechá (literalmente “Vá para você”), que começa a descrever a vida de uma das pessoas mais incríveis que já passaram pela face da Terra: Avraham Avinu, o nosso patriarca que trouxe o monoteísmo de volta ao mundo depois de muitas gerações de idolatria e esquecimento de D'us. Avraham era uma pessoa com um gigantesco potencial, e D'us transformou este potencial em realização através de 10 testes que ele passou em sua vida. Após cada teste que Avraham conseguia superar, ele crescia espiritualmente em uma nova área e conseguia se aproximar um pouco mais da perfeição.
 
Sabemos que Avraham nos deixou ensinamentos preciosos. Porém, para aprender mais de Avraham, precisamos entender exatamente quais foram os testes pelos quais ele passou. Muitas vezes olhamos os testes de maneira superficial e acabamos perdendo a lição principal. Um exemplo é o segundo teste descrito nesta Parashá: “Houve uma fome na terra, e Avram desceu para o Egito para morar lá, pois a fome era muito severa na terra” (Bereshit 12:10). Aparentemente o teste foi passar pela dificuldade da fome e a necessidade de se mudar para conseguir seu sustento sem nenhum tipo de questionamento.
 
Mas para entender de forma mais profunda qual foi exatamente o teste de Avraham, precisamos perceber o contexto no qual este teste aconteceu. A Parashá começa descrevendo o teste de “Lech Lechá”, no qual Avraham precisou abandonar a sua casa, sua comodidade e sua “zona de conforto” para ir a uma terra estranha, na qual ele não sabia o que encontraria. Na verdade, Avraham não sabia nem mesmo para onde iria, pois D'us ainda não havia revelado. Mesmo assim, sem nenhum questionamento, ele abandonou sua nação, seus amigos e sua família e iniciou sua jornada, passando com louvor pelo difícil teste. Mas ainda não era o momento de Avraham descansar. Logo que ele chegou em Israel, o objetivo que D'us havia definido para sua viagem, houve uma grande fome que o obrigou a ir ao Egito.
 
De acordo com Rashi (França, 1040 – 1105), o teste não foi a fome propriamente dita. O desafio foi não questionar a vontade de D'us, pois Ele havia ordenado a Avraham abandonar tudo e ir para Israel, mas assim que Avraham chegou lá, D'us fez com que tivesse que ir embora. Avraham sabia que, se D'us havia pedido para que ele fosse para Israel, era para que ele pudesse atingir seu potencial espiritual. Porém, agora que ele havia acabado de chegar ao seu objetivo, ao lugar onde poderia crescer, ele se deparou com um obstáculo e foi obrigado a ir ao Egito, uma atitude que aparentemente contradizia todo o propósito da sua missão na vida. Apesar de Avraham acreditar que seu objetivo era estar em Israel, ele se viu obrigado a sair assim que chegou. Ele poderia ter questionado os motivos pelos quais ele havia sido forçado a abandonar seu objetivo espiritual.
 
Explica o Rav Yehonasan Gefen que, apesar das dificuldades, Avraham não se sentiu frustrado nem questionou D'us. Ele reconheceu que não havia entendido completamente como sua jornada de “Lech Lechá” deveria ocorrer, pois sabia claramente que tudo está nas mãos de D'us, cuja sabedoria é infinita. Avraham fez a sua parte, se esforçou, mas aceitou que tudo o que estava além do seu controle era a Vontade de D'us e, por isso, não havia nenhum motivo para desanimar. Ele sabia que a fome não era por “causas naturais”, era um decreto que vinha diretamente de D'us, então seguramente havia explicação, havia alguma lógica no Plano Divino.
 
De fato, enxergando o quadro completo, todos os eventos que ocorreram no Egito e todos os desafios que Avraham enfrentou demonstraram ter muitos benefícios, tanto para Avraham quanto para suas futuras gerações. Por exemplo, Avraham voltou do Egito com muitas riquezas, o que teve importantes implicações espirituais. Além disso, o incidente do sequestro de Sara no Egito e a praga que atingiu o Faraó é um exemplo de “Maassê Avót, Siman Lebanim” (Os atos dos nossos patriarcas são um “sinal” para seus futuros descendentes). Avraham estava preparando as “fundações” das futuras experiências que os judeus passariam no Egito muitos séculos depois, incluindo as pragas que atingiriam o Faraó e os egípcios por seus maus atos.
 
Explica o Ramban zt”l (Nachmânides) (Espanha, 1194 – Israel, 1270) que todos os testes que Avraham passou na vida também serão enfrentados pelos seus descendentes, e a forma como ele lidou com seus desafios também foi herdada por nós e nos dará a habilidade para também superarmos os testes que surgem em nossas vidas. Em especial, o teste da fome é muito relevante para nós. Muitas vezes tomamos decisões baseadas no nosso entendimento do que é correto e na nossa vontade de cumprir a Vontade de D'us. Isto muitas vezes envolve mudanças em nossas vidas. Podem ser mudanças grandes, como uma mudança de país, uma mudança de carreira, a decisão de se casar ou de ter filhos, ou até mesmo mudanças pequenas, como o comprometimento de crescer espiritualmente através de pequenos acréscimos no estudo da Torá e no cumprimento das Mitzvót. Normalmente, quando a pessoa assume mudanças em sua vida, já tem suas expectativas de quais desafios terá que enfrentar e como poderá superá-los. Entretanto, é comum nos deparamos com dificuldades e obstáculos que não havíamos previsto e que parecem contradizer nosso plano de crescimento. Nestas situações, há uma forte inclinação para ficarmos frustrados por não conseguirmos crescer da maneira que desejávamos.
 
Mas por que nos sentimos frustrados quando nossos esforços não funcionam como havíamos planejado? Pois achamos que sabemos qual é o caminho ideal para atingirmos o nosso objetivo e o nosso verdadeiro potencial, e pensamos que somente assim nos tornaremos pessoas melhores. Quando somos colocados em uma situação que nos impossibilita de darmos continuidade ao nosso plano de crescimento previsto, nos sentimos frustrados porque achamos que isto nos impedirá de atingir o nosso objetivo. Portanto, a fonte da nossa frustração é acharmos que sabemos exatamente o que vai nos fazer chegar ao nosso máximo potencial.
 
Então qual é a maneira de lidar com estes obstáculos que chegam de maneira imprevista? Devemos reconhecer que somente D'us sabe quais circunstâncias a pessoa deve enfrentar na vida para potencializar seu crescimento, e que qualquer dificuldade que encontramos na vida é apenas um meio que Ele nos manda para ajudar o nosso crescimento e nos possibilitar o desenvolvimento de novas habilidades. Pensamos que as dificuldades nos afastam do nosso objetivo, mas apenas porque somos limitados. Apenas D'us, em Sua infinita sabedoria, sabe o que é realmente o melhor para nós e qual é o nosso verdadeiro caminho de crescimento.

Muitas vezes nos deparamos com obstáculos e dificuldades. Distrações inevitáveis, doenças, mudanças de vida. Nos sentimos frustrados por pensar que não podemos crescer da maneira que desejávamos. Vemos estas dificuldades como obstáculos que nos impedem de nos conectarmos a D'us. A lição do teste da fome pelo qual passou Avraham nos ensina a reconhecer que estes “incômodos” vêm de D'us, e certamente eles carregam o desafio exato que necessitamos naquele momento. Somente assim conseguiremos evitar a atitude prejudicial da frustração e poderemos focar em enfrentar os desafios com alegria e confiança em D'us. 

SHABAT SHALOM    

R' Efraim Birbojm

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