Eduardo e Fernando eram vizinhos. Eduardo era um fazendeiro muito pobre e simples, enquanto Fernando era um grande latifundiário, com centenas de cabeças de gado e plantações a perder de vista. Apesar das dificuldades, Eduardo costumava estar sempre feliz e de bem com a vida. Ele nunca se preocupava em trancar as portas e janelas de sua casa, e de noite dormia um sono profundo e tranquilo. Por estar sempre de bem com a vida, era uma pessoa pacífica e amigável. Fernando, ao contrário, apesar da tranquilidade financeira, costumava estar sempre muito tenso e irritado. Ele fazia questão de checar sempre se as portas e janelas de sua casa estavam trancadas. De noite ele não conseguia dormir bem, pois estava sempre preocupado que alguém poderia entrar em sua casa e roubar seu dinheiro.
Apesar de serem tão diferentes, Eduardo e Fernando eram muito amigos e gostavam de ficar conversando nos finais de tarde. Certo dia, após escutar de Eduardo as dificuldades que ele tinha para pagar suas contas, Fernando teve uma ideia. Na manhã seguinte, bateu na porta da casa simples de Eduardo e entregou a ele um baú. Eduardo abriu e viu que estava cheio de moedas de ouro, uma verdadeira fortuna. Fernando percebeu a confusão no olhar de Eduardo e explicou:
– Querido amigo, graças a D'us eu fui abençoado com muitas riquezas. Dói ver um amigo tão próximo viver nesta pobreza. Por favor, aceite este presente, para que você possa viver com mais tranquilidade.
Eduardo ficou incrivelmente feliz. Durante o dia inteiro ele ficou alegre, o sorriso não saía de seu rosto, às vezes ele até dava risada sozinho. Mas quando a noite chegou e Eduardo foi para a cama, como de costume, ele não conseguiu dormir. Lembrou-se que as portas e janelas estavam abertas, alguém poderia entrar para roubar seu baú de moedas de ouro. Levantou-se rapidamente, trancou as portas e janelas, verificou se o baú estava bem fechado e foi deitar-se novamente. Mas mesmo assim ele ainda não conseguia dormir. Decidiu trazer o baú para perto da sua cama e ficou deitado, de olhos abertos, vigiando o dinheiro, até que foi vencido pelo cansaço. Já era de madrugada quando adormeceu, e mesmo assim teve um sono leve e perturbado, acordando assustado ao menor ruído. Assim que amanheceu, Eduardo pegou o baú de dinheiro e levou-o de volta para a casa de Fernando. Bateu na porta, entregou a ele o baú e disse:
– Querido amigo, eu serei eternamente grato pelo seu incrível gesto de bondade, mas pegue de volta seu dinheiro. De que me adianta este dinheiro se ele não me deixa nem mesmo dormir tranquilamente? Eu sou pobre, tenho minhas preocupações, mas pelo menos eu durmo em paz. Da mesma forma que este dinheiro, em uma única noite, conseguiu tirar minha paz, tenho certeza de que se eu ficar com ele, ao invés de ganhar algo, eu vou apenas perder”.
Passamos a vida buscando acumular bens e dinheiro. O problema é que não percebemos o quanto o mundo material nos escraviza e muda a nossa forma de viver. Preocupações, medos, desejos e arrogância são alguns dos efeitos colaterais do mundo material. Não é necessário fazermos voto de pobreza, mas é importante não deixar o mundo material nos escravizar. É o dinheiro que deve nos servir, e não nós que devemos servir o dinheiro.
Este Shabat coincide com o início da Festa de Pessach, um dos fundamentos de “Emuná” (fé) do povo judeu e um dos pilares da transmissão, de pai para filho, dos ensinamentos da Torá desde os dias de Moshé Rabeinu. Na noite de Pessach nos sentamos com nossas famílias e fazemos o Seder, recontando e revivendo, com detalhes, os milagres da salvação do povo judeu da terrível escravidão egípcia depois de 210 anos de sofrimentos. E certamente um dos elementos mais marcantes da Festa de Pessach é o nosso “pão não fermentado”, conhecido como “Matzá”. A Matzá tem um papel de destaque na noite do Seder, quando há inclusive uma obrigação da Torá de comermos dela uma quantidade mínima.
O Rav Yehuda Loew zt”l (Polônia, 1525 – República Checa, 1609), mais conhecido como Maharal de Praga, aponta que há uma aparente contradição em relação ao que a Matzá representa. Começamos a Hagadá levantando a Matzá e declarando: “Este é o pão da pobreza, que nossos antepassados comeram na terra do Egito”. Esta declaração demonstra um foco na Matzá como um símbolo da pobreza do povo judeu durante a escravidão no Egito. Já quase no fim da Hagadá nós levantamos novamente a Matzá e fazemos outra declaração, mas desta vez relembrando o fato de termos comido a Matzá no momento em que fomos libertados da escravidão do Egito, demonstrando um foco na Matzá como símbolo de liberdade. Como a Matzá pode representar, ao mesmo tempo, dois conceitos tão diferentes, e aparentemente até contraditórios, como pobreza e liberdade?
Para responder esta questão, antes precisamos entender o conceito de escravidão e liberdade, para depois examinarmos qual é a relação destes conceitos com a Matzá. Quando pensamos em escravidão, a primeira ideia que vem à nossa cabeça é uma pessoa acorrentada, obrigada a fazer trabalhos pesados e castigada com duras punições físicas. Porém, o Maharal de Praga define a escravidão de uma maneira muito mais abrangente. Segundo ele, uma pessoa é escrava quando está conectada a coisas que são externas à sua essência, e a pessoa necessita destas coisas externas para darem a ela um senso completo de identidade. A escravidão cria um nível de dependência tão grande que, quando a pessoa não tem as coisas externas que necessita, ela sente-se incompleta, como se faltasse parte de sua própria essência. Além disto, estas coisas externas transformam a pessoa em um escravo por definirem certos aspectos de como a pessoa vive sua vida. Por exemplo, as necessidades de uma pessoa viciada em bebidas ou em drogas são muito influentes em suas escolhas e determinam até o seu estilo de vida.
Mas não é apenas o vício em bebidas ou em drogas que escraviza o ser humano. Também é muito comum as pessoas se tornarem “viciadas” em suas posses materiais. A dependência que as pessoas desenvolvem pelos seus bens influencia de maneira negativa e prejudicial suas decisões de vida. Um triste exemplo, que nos traz dor e sofrimento até hoje, foi o que ocorreu com os judeus da Alemanha. Muitos anos antes do Holocausto acontecer, os judeus alemães já haviam reconhecido as ameaças do regime nazista. Os judeus mais pobres, ao perceberem o perigo iminente, deixaram seus poucos bens para trás e fugiram, conseguindo salvar suas vidas e as vidas de suas famílias. Mas os judeus ricos, que tinham muitas propriedades e bens, sentiram mais dificuldade para deixar tudo aquilo para trás. Infelizmente muitos decidiram ficar na Alemanha e acabaram tendo finais trágicos. A riqueza e as posses daquelas pessoas as levaram a tomar uma decisão completamente equivocada.
A liberdade verdadeira, por outro lado, é reconhecer que nossa essência verdadeira é a nossa alma, e não as nossas posses nem o nosso sucesso no mundo material. Por isso, a pessoa livre não corre o risco de ficar “presa” por causa de seus bens. A pessoa livre vê seus bens apenas como um meio para chegar a um final maior, mas nunca os vê como parte de sua própria essência.
O Maharal de Praga explica como a Matzá está relacionada a estes dois conceitos. A Matzá é uma combinação de farinha e água em suas formas mais básicas. Se a massa é deixada em repouso por algum tempo, ela fermenta e se torna “Chametz”, que representa um acréscimo à essência pura da Matzá. Neste sentido, a Matzá representa o conceito de liberdade, isto é, estar livre de qualquer coisa externa à sua essência. O Chametz, ao contrário, é criado apenas quando a levedura cresce e acrescenta algo à combinação bruta de farinha e água. Neste sentido, o Chametz representa um acréscimo à essência pura da Matzá.
Com este entendimento é possível explicar como a Matzá pode representar dois conceitos aparentemente tão diferentes: a pobreza e a liberdade. Uma pessoa que é criada com um padrão de vida alto certamente ficará tão acostumada com este padrão de vida que dificilmente conseguirá, por vontade, se desconectar dele. De certa maneira, podemos dizer inclusive que a pessoa está escravizada, presa a este padrão de vida. Por exemplo, uma mulher que foi criada em uma casa grande, dormindo sozinha em um quarto com suíte particular, encontrará muita dificuldade para dividir o uso do banheiro com outra pessoa, mesmo quando esta outra pessoa for o seu próprio marido. Ao contrário, uma pessoa que começou a vida com pouca bagagem externa, isto é, com poucas posses materiais, considera muito mais fácil evitar tornar-se um escravo das coisas que são externas a ele.
Neste sentido, a pobreza é altamente favorável para alcançar a forma de liberdade descrita pelo Maharal de Praga. Uma pessoa pobre nunca se acostumou a possuir muitos bens, e por isso não está preso a eles. E isto explica como a Matzá pode representar, ao mesmo tempo, a pobreza e a liberdade. A pobreza é algo que contribui para a liberdade, pois a pessoa pobre não é escrava do mundo material e de suas posses materiais. De acordo com isso, o “pão da pobreza” que os judeus comeram no Egito representa que eles não tinham posses que eram externas à sua essência. E pelo fato de não terem nada, foi muito mais fácil para eles atingirem a liberdade de se identificar apenas com sua essência pura.
Mas por que foi importante aos judeus alcançarem este nível de liberdade justamente neste momento? Pois a saída do Egito foi o “nascimento” do povo judeu, um processo que os conduziria ao recebimento da Torá no Monte Sinai. Era essencial que naquele momento o povo estivesse completamente livre de qualquer “bagagem” externa que poderia contaminar sua essência verdadeira. Portanto, o fato deles serem tão pobres durante sua permanência no Egito facilitou que eles desenvolvessem as habilidades necessárias para começarem seu novo papel no mundo como o “Povo de D'us”.
Em Pessach, e em especial na noite do Seder, nós tentamos recapturar e reviver este sentimento de liberdade que nossos antepassados atingiram quando saíram do Egito. Nós comemos a Matzá como um lembrete simbólico da necessidade de nos despojarmos das coisas que são externas a nós e procurarmos nossa verdadeira e pura essência. Por isso não é suficiente apenas fazer os rituais do Seder sem tentar internalizar suas mensagens.
Pessach é o momento de examinarmos nosso nível de liberdade, de avaliar o quão estamos escravizados pelos nossos bens e por tudo o que é externo à nossa essência. E é o momento propício para nos lembrarmos da nossa verdadeira essência, nossas almas, e que as realizações espirituais são as únicas coisas que têm um valor verdadeiro.
SHABAT SHALOM E PESSACH KASHER VE SAMEACH
Rav Efraim Birbojm