“Certa vez soldados do exército russo vieram até a casa do Rav Yitzchak Zev Soloveitchik zt”l (Bielorússia, 1886 – Israel, 1959), mais conhecido como Brisker Rav, intimando-o a acompanhá-los. Um soldado judeu havia sido condenado à morte por dormir durante seu período de sentinela, e que este soldado havia pedido para falar com um rabino antes de morrer. Porém, para espanto dos seus alunos e dos soldados russos, o Brisker Rav se recusou a ir falar com o prisioneiro condenado à morte.
Após algum tempo, uma segunda delegação de soldados chegou à casa do Brisker Rav, exigindo que ele se apresentasse imediatamente na prisão, sob o risco de receber um duro castigo caso se recusasse. Mas o Brisker Rav não se dobrou diante das ameaças e reafirmou que não iria. Os alunos ficaram visivelmente confusos, pois além de colocar a própria vida em risco, por que o rabino não se importava com os sofrimentos daquele pobre judeu condenado à morte? Por que não queria ir confortá-lo na prisão e ajudá-lo naqueles últimos momentos difíceis?
Foi então que uma terceira delegação de soldados bateu na porta. Porém, desta vez eles não vinham para intimar o Brisker Rav a comparecer à prisão, e sim para avisá-lo que sua presença não era mais necessária. A família daquele jovem soldado havia apelado à Suprema Corte de Justiça e a sentença de morte havia sido revogada. Quando os alunos questionaram de onde o Brisker Rav havia conseguido reunir forças para aquela atitude heroica, ele explicou:
– Eu simplesmente cumpri a Halachá (Lei Judaica). De acordo com o Rambam (Maimônides), se um judeu inocente é injustamente condenado à morte por um tribunal não judaico, é proibido a um judeu entregá-lo às autoridades para que ele seja executado, mesmo que para isso seja necessário colocar a própria vida em risco. Se eu tivesse ido à prisão, o rapaz teria sido executado tão logo eu saísse. Ao seguir a Halachá, a vida daquele jovem judeu acabou sendo salva”.
Muitos ensinamentos e decretos rabínicos parecem não fazer sentido. Mas eles são os verdadeiros conhecedores da Torá, e em suas atitudes eles levam em consideração muitos detalhes que nós desconhecemos.
Nesta semana lemos a Parashá Pinchás, que começa descrevendo um ato heroico de Pinchás, neto de Aharon HaCohen. No final da Parashá da semana passada, os povos de Moav e Midian haviam intencionalmente causado com que o povo judeu transgredisse com imoralidades e idolatria, transgressões que D'us abomina, e uma praga começou a dizimar os judeus. Até mesmo pessoas importantes transgrediram, como o príncipe da tribo de Shimon, Zimri, que cometeu um ato público de imoralidade com uma princesa de Midian chamada Kosbi. Pinchás, tomado por um espírito de “Kanaut” (zelo pela honra de D'us), se levantou e, mesmo arriscando a vida, aplicou aos dois transgressores ilustres a pena de morte, fazendo com que a praga cessasse. O total de mortos na praga foi de vinte e quatro mil judeus, e se não fosse a intervenção de Pinchás, a tragédia teria sido ainda pior.
Este ato de Pinchás é semelhante a outro evento descrito na Torá. Quando Yaacov estava voltando para casa, depois de passar muitos anos trabalhando para seu tio Lavan, sua filha Diná foi sequestrada e violentada pelo príncipe Shechem. Dois filhos de Yaacov, Shimon e Levi, inconformados com aquele ato de desonra, quiseram aplicar a justiça ao príncipe e ao resto da população, pois haviam presenciado aquela violência e não fizeram nada. Eles bolaram um plano para enfraquecer os homens da cidade e em seguida mataram todos. Aparentemente Shimon e Levi agiram corretamente, pois estavam motivados pela mesma “Kanaut” de Pinchás, isto é, o zelo pela honra de D'us e a abominação pelos atos imorais.
Porém, o que nos chama a atenção é a diferença do desfecho nos dois casos. O ato de Pinchás agradou muito a D'us, e ele foi recompensado de uma maneira especial por ter colocado a própria vida em risco pela honra de D'us. Quando Aharon e seus filhos foram apontados como Cohanim (sacerdotes) e ungidos, somente os descendentes que nasceram daquele momento em diante se tornaram Cohanim. Mas Pinchás, neto de Aharon, já havia nascido naquele momento e, portanto, não seria Cohen, apenas Levi. D'us concedeu a Pinchás, como recompensa por seu esforço, que ele e seus descendentes se tornassem Cohanim. Já o desfecho do ato de Shimon e Levi foi que, no momento do falecimento de Yaacov, enquanto alguns dos seus filhos receberam Brachót (bênçãos), Shimon e Levi foram duramente repreendidos. Porém, se Shimon e Levi também estavam movidos pela mesma “Kanaut” de Pinchás, e também colocaram suas vidas em risco para fazer o que era correto, por que o desfecho das duas histórias foi tão diferente?
Explica o Rav Yitzchak Zilberstain shlita que a característica de “Kanaut”, de agir motivado pelo zelo com a honra de D'us, exige um equilíbrio perfeito de cálculos e um nível muito grande de precisão. É necessário checar o ato de acordo com diferentes pontos de vista, e deve ser levado em consideração cada detalhe, inclusive o momento e o local em que o ato será realizado. Além disso, para uma pessoa estar apta a fazer um ato de “Kanaut”, ela deve ser uma profunda conhecedora das Halachót, em especial daquelas relacionadas com seu ato, pois somente assim é garantido que seu ato está completamente de acordo com a vontade de D'us. E, finalmente, a pessoa deve refletir e checar se seu ato não está sendo influenciado por nenhum desejo ou inclinação pessoal.
Em geral, para ter certeza de que não estamos sendo parciais em nosso julgamento, é necessário o aconselhamento com um grande sábio de Torá, que pode ajudar a decidir se o ato planejado é realmente correto e aplicável. E esta foi uma das diferenças fundamentais entre o ato de Pinchás e o ato de Shimon e Levi. Rashi (França, 1040 – 1105) explica que Pinchás, antes de executar seu ato de “Kanaut”, se aconselhou com Moshé Rabeinu, o grande sábio da geração. Ao escutar o caso, Moshé fez todos os cálculos necessários e confirmou a Pinchás que, naquele caso e naquelas circunstâncias, aplicar a pena de morte era realmente o correto. Por isso Pinchás recebeu uma recompensa tão grande.
Já no caso de Shimon e Levi, o grande sábio da geração era seu pai, Yaacov. Porém, de acordo com Rashi, ele não foi consultado antes da execução do plano. E se Shimon e Levi tivessem se aconselhado, certamente Yaacov os teria convencido a não colocar o plano em prática, pois havia um erro no cálculo deles. Apesar da indignação de Shimon e Levi ser totalmente válida, pois a falta de justiça diante de uma desonra tão grande era algo realmente vergonhoso e imoral, eles não levaram em consideração todas as condições necessárias para fazer o ato de “Kanaut”.
De acordo com o Rav Ovadia Sforno zt”l (Itália, 1475-1550), Yaacov tinha um forte motivo para que aquele ato não fosse feito, como está escrito: “E disse Yaacov para Shimon e Levi: Vocês me causaram problemas, me envergonhando diante dos habitantes da terra” (Bereshit 34:30). O Sforno explica que Yaacov estava preocupado com o “Chilul Hashem” (denegrir o Nome de D'us) que o ato de Shimon e Levi poderia causar, pois para colocar seu plano em prática, eles haviam enganado os habitantes da cidade, podendo fazer com que Yaacov, o símbolo da verdade e da retidão, fosse visto pelos outros povos como um mentiroso e enganador. Mas qual foi a enganação?
Para poder matar todos os habitantes da cidade do príncipe Shechem, Shimon e Levi bolaram um plano. Eles disseram que queriam morar junto com os habitantes, e que também aceitariam se casar entre si. Porém, com astúcia, Shimon e Levi afirmaram que havia um impedimento, pois não poderiam viver com eles como se fossem um único povo enquanto as pessoas não fizessem o Brit Milá (circuncisão). Eles garantiram que, caso todos os homens da cidade aceitassem fazer o Brit Milá, então a família de Yaacov permaneceria vivendo com eles. A verdade é que Shimon e Levi nunca tiveram a intenção de viver com eles como se fossem um povo só. Eles exigiram que os homens fizessem Brit Milá apenas para enfraquecê-los e tornar mais fácil o ato de vingança. De acordo com a Torá, o terceiro dia depois do Brit Milá é o dia em que a pessoa está mais fraca e debilitada, e foi justamente neste dia que Shimon e Levi executaram seu plano e mataram todos os habitantes, inclusive o príncipe Shechem, que havia cometido o ato de desonra com Diná.
Portanto, a grande crítica de Yaacov, e que de acordo com o seu entendimento estava acima da “Kanaut” de Shimon e Levi, é que eles não poderiam ter matado todos os habitantes depois de terem garantido a eles que, caso fizessem o Brit Milá, poderiam se unir e viver em paz com a família de Yaacov. Como eles realmente fizeram o Brit Milá, ter matado os habitantes foi uma atitude de mentira e enganação. O maior erro de Shimon e Levi foi ter garantido que viveriam com o povo do príncipe Shechem e se casariam entre si, pois eles sabiam que esta mistura e assimilação estava proibida. Estes fatores fizeram com que o ato de “Kanaut”, ao invés de ter sido uma Mitzvá, acabasse sendo uma transgressão, resultando em uma merecida repreensão a Shimon e Levi. Eles ficaram tão cegos com a desonra de sua irmã que tomaram uma atitude precipitada. Apesar da grandeza deles, faltou o aconselhamento com um sábio de Torá.
Mas não é apenas um “Kanai” que precisa se aconselhar com os sábios de Torá. Cada um de nós também tem a obrigação de estar em contato com os sábios, para nos aconselharmos, escutarmos seus ensinamentos e aprendermos com seus atos. Muitas vezes tomamos decisões importantes utilizando apenas nossa lógica, mas que é muitas vezes limitada e não leva em consideração todos os aspectos necessários para uma decisão completamente equilibrada. Somos pouco conhecedores da Halachá e, portanto, suscetíveis a cometer erros por desconhecimento. Os grandes sábios de cada geração, além dos conhecimentos de Torá, ainda recebem uma “Siata Dishmaia” (ajuda especial dos Céus) para saber lidar com as questões que surgem em cada época e para vencer os desafios que se renovam.
Normalmente nossas decisões são muito influenciadas pelos nossos desejos e inclinações. Somos parciais em nossos julgamentos, e isto nos faz cometer erros em nossos cálculos. Somente nos aconselhando com alguém “de fora”, que não está sob os mesmos tipos de influências, é que podemos decidir com ponderação o que é realmente o correto a se fazer em cada situação. Por isso, é muito importante ter contato com algum sábio de Torá, para nos aconselharmos nas mais diversas áreas da vida, em especial nos momentos em que fazemos escolhas que terão impactos de longo prazo.
Como na história do Brisker Rav, muitas vezes não entendemos os ensinamentos e o comportamento dos nossos sábios. Mas precisamos ter a humildade de saber que nossa dificuldade é proveniente do nosso desconhecimento da Halachá. Nossos sábios estão muito mais conectados com a espiritualidade e conhecem de maneira muito mais profunda o que D'us quer de nós. Por isso, nas decisões importantes da vida, é fundamental nos aconselharmos com um sábio de Torá se quisermos fazer o que é correto de verdade. Isto pode evitar que a pessoa cometa, de maneira equivocada, uma transgressão achando que está fazendo uma grande Mitzvá.
SHABAT SHALOM
R' Efraim Birbojm