Era uma sexta-feira de tarde e Jony, que ainda era um calouro na faculdade, voltava para casa. Ele viu Caio, um rapaz da sua sala, caminhando para casa e levando todos os seus livros. Jony se perguntou por que alguém levaria para casa tantos livros na sexta-feira. Chegou à conclusão de que aquele rapaz deveria ser um “Nerd”. No final de semana de Jony não havia espaço para livros. Já estava tudo planejado: festas, diversões e um jogo de futebol com os amigos no domingo. Conforme Jony foi caminhando, viu um grupo de rapazes correndo em direção a Caio. Eles arrancaram todos os livros dele e, dando gargalhadas, o empurraram. Caio caiu no chão, enquanto seus óculos voaram longe.
Caio levantou o rosto e Jony viu uma terrível tristeza em seu olhar. Ficou com pena e correu para ajudá-lo. Não pôde deixar de reparar na lágrima que escorria pelo rosto de Caio enquanto ele agradecia pela ajuda. Começaram a conversar e Jony descobriu que Caio morava perto de sua casa. Voltaram juntos, e Caio revelou ser um rapaz legal. Jony aproveitou para convidá-lo para jogar futebol no domingo. Na segunda-feira Caio voltou com todos os seus livros para a faculdade. Jony fez uma pequena piada e perguntou por que levar e trazer de volta todos os livros, mas Caio não respondeu, simplesmente mudou de assunto. Jony e Caio acabaram se tornando melhores amigos durante os anos de faculdade.
Os anos se passaram e a formatura da faculdade se aproximava. Caio foi escolhido como o orador oficial da turma. Ele havia realmente se encontrado durante aqueles anos de faculdade. Estava mais encorpado e havia se tornado um rapaz bonito, respeitado pelos amigos e popular entre as meninas. Visivelmente nervoso, Caio subiu no palco e começou seu discurso:
– A formatura é um momento especial, no qual podemos agradecer àqueles que nos ajudaram durante estes anos difíceis. Pais, professores, irmãos… mas principalmente aos amigos. Eu estou aqui para dizer que ser um amigo para alguém é o melhor presente que você pode dar a outra pessoa. E eu vou explicar porque isto é tão importante…
Para a surpresa de Jony, Caio começou a relembrar o dia em que eles se conheceram, anos atrás. E ele revelou algo terrível. Caio contou que estava muito infeliz, se sentindo deslocado na faculdade, sem amigos. Sua tristeza era tanta que ele havia planejado se matar naquele final de semana. Caio revelou então o mistério dos livros: naquela sexta-feira, ele havia esvaziado seu armário para que sua mãe não tivesse que fazer isso depois que ele se matasse. Caio, visivelmente emocionado, olhou diretamente nos olhos de Jony, deu um sorriso e disse: “Com uma pequena atitude, meu amigo salvou minha vida”.
Aquele rapaz popular e bonito contava a todos, de forma aberta e corajosa, sobre um momento de fraqueza. Até aquele dia Jony jamais havia se dado conta da grandeza do ato que havia feito. Naquele instante ele aprendeu a lição mais importante de sua vida: com um pequeno gesto, podemos mudar completamente a vida de uma pessoa, e até mesmo salvar uma vida.
Na Parashá desta semana, Shoftim, entre outros assuntos, a Torá descreve uma situação na qual um corpo é encontrado em uma região não habitada, no caminho entre duas ou mais cidades, de forma que não é possível identificar o assassino e nem mesmo de onde aquela pessoa que foi morta estava vindo. A Torá então nos ensina que nesta situação deveria ser feito um ritual de expiação por aquele crime hediondo. Por não ser possível saber de onde o morto havia vindo, todas as cidades em volta eram medidas e a cidade mais próxima ao corpo assumia a “responsabilidade”. Entre outros procedimentos, os anciãos desta cidade tinham que fazer uma declaração: “Nossas mãos não derramaram este sangue” (Devarim 21:7).
O Talmud (Sotá 45b) questiona a necessidade desta declaração. Por que justamente sobre os anciãos da cidade, as pessoas mais justas e corretas, recairia a suspeita de que eles haviam matado aquela pessoa? Qual é a lógica desta estranha declaração, que fazia parte obrigatória desta cerimônia descrita pela Torá?
O Talmud responde que em nenhum momento a Torá estava suspeitando que os anciãos houvessem cometido o assassinato. Mas justamente por serem os maiores Tzadikim (Justos) da cidade, era esperado deles que tivessem recebido aquele homem e cumprido da maneira correta a Mitzvá de “Achnassat Orchim” (receber bem os convidados). Segundo o Talmud, a declaração dos anciãos de que “nossas mãos não derramaram este sangue” na verdade queria dizer que, se aquele homem tivesse passado pela cidade deles, certamente teria recebido os cuidados necessários e não teria saído sem provisões e sem o devido acompanhamento.
Destas palavras do Talmud fica implícito que se a vítima tivesse sido acompanhada e tivesse levado provisões, certamente não teria sido assassinada. Mas como o Talmud pode afirmar que se o homem tivesse sido acompanhado ele não teria morrido? A pergunta fica ainda mais difícil de acordo com o Rav Yehuda Loew (Praga, 1525 – 1609), mais conhecido como Maharal de Praga, que afirma que para cumprir a Mitzvá de “Levaia” (acompanhar o convidado no momento da despedida) não é necessário acompanhar o convidado até a cidade vizinha, basta acompanhá-lo por “4 Amót” (Amá é uma medida da Torá, que equivale a aproximadamente meio metro) fora de casa. Portanto, o que estes poucos passos acompanhando o convidado mudariam na segurança dele? Além disso, não há nenhuma menção na Halachá (Lei Judaica) de que a pessoa deveria estar armada quando acompanhava seu convidado no caminho. Portanto, como o simples ato de acompanhar o convidado poderia ter prevenido sua morte?
O Rambam (Maimônides) (Espanha, 1135 – Egito, 1204) aumenta ainda mais este questionamento ao afirmar que, dentre os vários componentes da Mitzvá de “Hachnassat Orchim”, justamente a parte de acompanhar o convidado no momento da despedida é a mais importante. Como pode ser que acompanhar uma pessoa em parte do caminho pode ser mais importante do que lhe oferecer comida ou um lugar para descansar?
Explica o Rav Yohanan Zweig que a Torá está nos ensinando um fundamento muito importante em relação à psicologia do ser humano. Quando alguém está visitando uma cidade ou está perdido, geralmente está mais suscetível a ser atacado ou roubado do que alguém que é morador da cidade. A razão é que quando um ladrão escolhe sua vítima, normalmente ele busca certo perfil. O ladrão tem medo que sua vítima possa reagir, sacando uma arma ou simplesmente entrando em uma luta corporal para se proteger. Por isso, em geral os ladrões escolhem pessoas que aparentam estar mais vulneráveis e com menos iniciativa de se defender. Uma pessoa que não está familiarizada com o ambiente tende a projetar sua falta de confiança na maneira como se comporta, tornando-se assim uma vítima mais atrativa para o ladrão que, com seu “olho clínico”, facilmente percebe esta fragilidade.
É neste sentido que acompanhar um convidado pode salvar a vida dele. Quando acompanhamos alguém que se sente estranho ao ambiente, mesmo que sejam apenas alguns poucos passos, estamos transmitindo nossa tristeza com sua partida e demonstrando que gostaríamos de estar com ele. Isto dá para a pessoa, em última instância, um forte sentimento de pertencer àquele local. A pessoa se sente fortemente conectada ao lugar de onde ela está saindo e, por isso, caminha com um ar de confiança, o que pode afastar potenciais ladrões de quererem atacá-lo. Em contraste, mesmo que a pessoa dê ao visitante comida, bebida e um lugar para dormir, se ela não o acompanha ao menos por alguns passos no momento em que ele está deixando a cidade, o visitante se sente desconectado e emocionalmente fraco. Isto acabará se refletindo em atitudes que projetam a sua falta de confiança, resultando em uma maior propensão de ser atacado por algum bandido que está escondido nas sombras, à espera de uma vítima.
Atualmente, educadores e psicólogos têm discutido muito a ameaça do “bullying” e suas consequências negativas no desenvolvimento saudável de uma criança. Mas os efeitos psicológicos dos nossos atos sobre a autoestima de outras pessoas já foram ensinados há mais de 3 mil anos pela Torá. E esta é justamente a lição da Parashá: através de pequenas atitudes em relação às outras pessoas podemos influenciar de maneira muito marcante a vida delas, de forma positiva ou negativa. Precisamos aproveitar este potencial que temos, de através de pequenos atos dar aos outros mais confiança e autoestima. Um elogio ou uma demonstração de se importar com o próximo podem mudar o rumo de uma vida. Com estas pequenas atitudes, podemos estar trazendo muita vida para o mundo sem nem mesmo perceber.
SHABAT SHALOM
Rav Efraim Birbojm