“Rodrigo contratou Fernando, um experiente e renomado carpinteiro, para reformar alguns móveis de sua casa. Mas o dia de Fernando não começou nada bem. Ele chegou atrasado, com as mãos sujas de graxa, pois o pneu do seu caminhão havia furado. E o resto do dia também não foi fácil. Sua furadeira queimou, a serra quebrou, ele fez um corte na mão e, na hora de ir embora, seu caminhão não funcionou. Rodrigo, com dó, ofereceu uma carona. Sem alternativa, Fernando aceitou.
Durante o caminho, Fernando estava com o rosto tenso. Ia em silêncio, olhando para baixo, sem querer muita conversa. Rodrigo respeitou e também não tentou puxar papo. Quando chegaram, Fernando convidou-o para conhecer sua casa e sua família. Rodrigo estava com pressa, mas ficou sem jeito de não aceitar. Não deixou de notar que Fernando, antes de entrar em casa, apoiou as duas mãos sobre uma árvore, ficando assim por alguns instantes, e somente depois entrou em casa. E um grande milagre aconteceu, pois Fernando transformou-se em outra pessoa. O rosto tenso foi substituído por um enorme sorriso e o silêncio virou gargalhadas enquanto ele abraçava os filhinhos e a esposa.
No momento de ir embora, Fernando agradeceu muito pela carona e acompanhou Rodrigo até o carro. Ao passarem pela árvore, Rodrigo não aguentou a curiosidade e perguntou sobre a estranha atitude de Fernando e a mudança repentina de comportamento. Fernando explicou:
– Todos nós temos dificuldades no nosso dia, e quando voltamos para casa acabamos descontando em nossas esposas e filhos todas as nossas frustrações. Mas eles não merecem escutar grosserias, pois eles não têm nada a ver com as dificuldades do nosso dia. Então eu decidi que, todas as vezes que eu chegasse em casa, deixaria todos os meus problemas naquela árvore que fica ao lado da entrada, e quando eu saísse de casa de manhã, eu pegaria os problemas de volta.
– Que interessante – falou Rodrigo, surpreso com a atitude positiva do marceneiro – Mas funciona mesmo?
– Melhor do que eu esperava – respondeu Fernando, abrindo um sorriso – Pois eu deixo os problemas na árvore de noite, mas quando eu volto para pegá-los no dia seguinte, eles não são nem metade do que eu me lembrava ter deixado…”
Não é algo fácil, mas precisamos desenvolver a capacidade de, mesmo nas situações mais difíceis do nosso cotidiano, manter o autocontrole e não “descontar” nos outros nossos problemas e dificuldades.
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Nesta semana lemos a Parashá Chaiei Sara, que descreve a busca de uma esposa para o nosso patriarca Ytzchak. Avraham havia quase sacrificado Ytzchak, chegando a colocá-lo sobre um altar a pedido de D'us, mas foi impedido por um anjo na última hora. Avraham entendeu que se Yitzchak tivesse realmente sido sacrificado, ele teria morrido sem deixar descendentes. Portanto, ele viu que era hora de Ytzchak se casar e ter uma família, e confiou a Eliezer, seu fiel ajudante, a importante missão de voltar para sua terra natal e procurar entre seus parentes uma esposa para Ytzchak.
Eliezer não queria procurar uma esposa qualquer para Ytzchak, e sim uma moça que tivesse bons traços de caráter. Ele fez uma longa viagem até a cidade natal de Avraham e, chegando lá, foi direto para um poço de água, no fim da tarde, justamente na hora em que as mulheres costumavam ir para lá buscar água. Eliezer sabia que lá poderia testar a bondade das moças, pedindo que elas lhe servissem água e também dessem água aos seus camelos. A Providência Divina fez com que a primeira moça que apareceu foi Rivka, que era parente de Avraham. Após ela ter enchido seu jarro, Eliezer se aproximou e pediu água, como está escrito: “Por favor, me deixe beber um pouco da água do seu jarro” (Bereshit 24:17).
Deste versículo surge uma pergunta curiosa: Eliezer tinha acabado de atravessar um enorme deserto para buscar uma esposa para Ytzchak. Certamente ele devia estar com muita sede, e com as altas temperaturas do deserto era até mesmo um risco de vida caso ele não tomasse água. Então por que ele pediu para Rivka apenas um pouco de água, ao invés de pedir muita água?
Explica o Rav Ytzchak Zilberstain que o ser humano não é testado por seus atos grandes, e sim pelos seus pequenos atos cotidianos. A forma como ele fala com as outras pessoas e como ele se comporta nas pequenas atitudes mostram quem é ele de verdade. Para definir o nível espiritual de uma pessoa, é necessário observar como ela se comporta no seu dia-a-dia, nas coisas mais comuns e simples que ela faz.
Há um interessante ensinamento do mais sábio de todos os homens, Shlomo Hamelech (Rei Salomão), que nos ajuda a entender este conceito: “O Tzadik (justo) come para se saciar, mas o estômago do Rashá (malvado) está sempre insatisfeito” (Mishlei 13:25). O entendimento mais simples do versículo é que o Tzadik é aquele que come apenas o que é necessário para se sentir saciado, e fica satisfeito mesmo com pouco, enquanto o Rashá é aquele que come por gula, em excesso, para se empanturrar, e por isso sempre sente que ainda lhe falta algo. Porém, há um Midrash (parte da Torá Oral) que aprofunda o entendimento do versículo e afirma que “Tzadik” se refere a Eliezer, justamente por ter pedido para Rivka apenas um pouquinho de água, não de forma rude e descontrolada. Já “Rashá” se refere a Essav, que pediu para seu irmão Yaacov comida de forma grosseira, como está escrito: “Verta na minha boca desta coisa vermelha vermelha, pois eu estou exausto” (Bereshit 25:30).
O ensinamento deste Midrash é incrível. Eliezer fazia muitos atos positivos e construtivos, enquanto Essav fazia muitos atos negativos e destrutivos. Apesar disso, quando o Midrash quis dizer que “Tzadik” e “Rashá” se referem a Eliezer e Essav, traz como prova os versículos que apenas mencionam a forma como cada um deles pediu comida ou bebida em momentos de dificuldade. Isto demonstra que a forma como nos comportamos nos pequenos desafios do cotidiano é o que define nosso status espiritual.
Mas surge um grande questionamento quando refletimos sobre a definição de Essav como um “Rashá” por ter pedido para que seu irmão vertesse comida em sua boca. Antes de tudo, precisamos entender melhor em que contexto isto aconteceu. O versículo ressalta que Essav estava exausto, e nossos sábios explicam que naquele dia Essav havia saído para caçar algum animal para servir ao seu pai. Porém, no meio do caminho, ele se deparou com Nimrod, o governante da época, e os dois tiveram um desentendimento. Apesar de Nimrod ser considerado pela Torá um “Gibor” (valente e destemido), Essav se levantou contra ele e o assassinou. Além disso, nossos sábios dizem que Essav também cometeu naquele dia outras graves transgressões. Por causa de todo o esforço e energia gastos nestas transgressões, Essav estava extremamente cansado, a ponto de quase desmaiar, correndo até mesmo risco de vida caso não comesse algo logo. Foi por isso que ele pediu desesperadamente para que Yaacov despejasse a comida em sua boca. Essav falou de maneira grosseira justamente por seu desespero e pelo cansaço que dominava seu corpo. A prova disso é que ele já nem refletia mais sobre as palavras que saíam de sua boca, repetindo a palavra “vermelha” duas vezes, sem nenhum sentido.
Sabemos que em situações de “Pikuach Nefesh” (quando há algum risco de vida envolvido), a vida está acima das Mitzvót da Torá (com exceção de idolatria, relações ilícitas e assassinato). Isto quer dizer que em qualquer situação onde há perigo de vida, a pessoa deve transgredir as Mitzvót para se salvar ou salvar a vida de outra pessoa. O Talmud (Sanhedrin 74a) aprende isso do versículo que diz “E observem os Meus decretos e as Minhas leis, que o homem deve fazer e viver por elas, Eu sou D'us” (Vayikrá 18:5). O versículo ressalta “viver por elas”, e não morrer por elas. Por exemplo, temos a proibição de fazer certas atividades construtivas no Shabat, mas alguém que está com risco de vida deve ir imediatamente ao hospital para receber o tratamento necessário, mesmo que para isso necessite desrespeitar o Shabat. Portanto, se Essav estava em uma situação de Pikuach Nefesh, por que a Torá está cobrando dele um comportamento exemplar? Por que ele é considerado “Rashá” por ter falado com uma linguagem grosseira neste momento?
Explica o Rav Ytzchak Zilberstain que a Torá está nos ensinando algo impressionante. Apesar de o “Pikuach Nefesh” prevalecer até mesmo sobre a grande maioria das Mitzvót da Torá, ele não prevalece sobre a obrigação de falarmos as coisas de forma delicada. Por que o Midrash comparou Essav justamente com Eliezer? E com tantos bons atos que Eliezer fez na vida, por que justamente trazer o versículo do momento em que ele se encontrou com Rivka? Pois quando Eliezer viajou para procurar uma esposa para Ytzchak, ele também estava exausto por causa da viagem. Além disso, ele devia estar sedento e certamente muito pressionado pela responsabilidade de sua importante missão. Mas mesmo assim a Torá fez questão de registrar o quanto ele foi rigoroso consigo mesmo, pedindo água de uma maneira educada e comedida, diferente de Essav, que em um momento de dificuldade pediu comida de forma grosseira.
Fica para nós um ensinamento muito importante. Sempre focamos nos grandes atos, nos grandes testes que podem surgir pelo caminho. Queremos ser espiritualmente grandes, e achamos que isto somente ocorrerá quando vencermos testes difíceis como o sacrifício de Yitzchak. Mas a Torá nos ensinou, através da simples conduta de Eliezer em um pequeno detalhe do seu cotidiano, que não é nos grandes testes que podemos mostrar para D'us quem somos, é justamente nas pequenas atitudes, nos pequenos detalhes, que podemos fazer a diferença. Apesar de não serem tão difíceis quanto o teste do sacrifício de Ytzchak, os pequenos testes do cotidiano podem nos dar o rótulo de “Tzadik”.
Isto mostra a importância aos olhos de D'us do nosso “Derech Eretz”, isto é, a forma como falamos e nos comportamos com as outras pessoas. Mesmo nos momentos difíceis, temos que trabalhar muito nosso autocontrole. Pois morrer para santificar o nome de D'us, como Ytzchak estava disposto a fazer, é sem dúvida um ato heroico. Mas viver e santificar o nome de D'us através dos pequenos atos do cotidiano é mais heroico ainda.