Frio espiritual

Em uma madrugada, o Rabino Israel Salanter passou pela casa do sapateiro da cidade e percebeu que ainda havia uma luz acesa. O sapateiro estava sentado, concentrado, fazendo o seu trabalho sob a luz oscilante de uma vela que estava prestes a se extinguir.
 
– Por que você ainda está trabalhando? – perguntou o Rabino Israel Salanter- Está muito tarde! E, além disso, a sua vela em breve se extinguirá e você não poderá terminar o que você está fazendo.
 
– Isto não é problema – respondeu o sapateiro, com simplicidade – Todo o tempo que a vela estiver acesa, ainda é possível trabalhar e consertar.
 
O Rabino Israel se impressionou profundamente com estas palavras, e utilizou-as para seu trabalho espiritual. Se a pessoa deve trabalhar pelas suas necessidades físicas todo o tempo que a vela estiver acesa, muito mais a pessoa deve trabalhar para o seu aperfeiçoamento espiritual todo o tempo em que a alma, a “vela de D'us”, ainda estiver brilhando dentro dela.


No final da Parashá desta semana, Ki Tetse, a Torá nos comanda a nunca esquecer todo o mal que o povo de Amalek nos fez. Os traços negativos de Amalek são tão fortes que a Torá nos comanda inclusive a apagar qualquer memória deste povo no mundo. Eles nos atacaram pelas costas na saída do Egito, de uma maneira covarde, como está escrito: “Lembre o que Amalek te fez em teu caminho de saída do Egito. Quando eles te encontraram no caminho, e eles atacaram aqueles que se retardavam, todos os que estavam fracos atrás, quando você estava cansado e exausto, e eles não temeram a D'us” (Devarim 25:17,18).
 
Mas o versículo aparentemente não explica o que Amalek fez de tão grave que precisa ser apagado. Muitos foram os povos que nos perseguiram e nos atacaram de maneira covarde durante nossa história. Por exemplo, os egípcios nos maltrataram, atiraram nossos bebês no rio Nilo, nos escravizaram, e mesmo assim a Torá não nos comanda a apagar sua lembrança do mundo. O que torna o ataque de Amalek tão grave? E qual a essência deste povo que, segundo a Torá, é tão negativo que precisa ser apagado completamente para que o mundo possa chegar ao seu objetivo?
 
Explica o Rav Chaim Shmulevitz que Amalek não é apenas mais um povo contra o qual o povo judeu lutou. Na realidade, todo o mal do mundo e o lado sombrio do ser humano estão enraizados em Amalek. E a essência do mal se encontra justamente no versículo do ataque de Amalek, mais precisamente nas palavras “te encontraram no caminho”. A linguagem utilizada na Torá para “encontraram”, “Karechá”, vem da linguagem “Kar”, que significa “frio'. A essência de Amalek é esfriar o ser humano. O que isto significa?
 
Para entender, antes precisamos observar as particularidades da luta do povo judeu contra Amalek. Diferente de todas as outras guerras descritas na Torá, na qual os povos lutaram contra o povo judeu para defender seus territórios, Amalek nunca foi ameaçado. Eles viajaram centenas de quilômetros no deserto apenas para nos atacar, com um ódio gratuito. Rashi, famoso comentarista da Torá, explica o motivo verdadeiro do ataque com uma parábola. Imagine que há uma banheira com água fervendo, com uma temperatura tão alta que ninguém se atreve a entrar nela. Vem então um estúpido e, apesar de saber que vai se queimar, se atira na banheira com o único intuito de esfriar a água e permitir que outras pessoas entrem nela.
 
Quando o povo judeu foi retirado por D'us do Egito, com milagres abertos que esmagaram o até então invencível exército egípcio, todos os povos do mundo temeram. Ninguém ficou apático diante daquela fenomenal demonstração de força, onde as leis da natureza foram quebradas. A única exceção foi Amalek. Não apenas eles não temeram a D'us, mas também saíram para guerrear contra o povo judeu. Eles não tinham visto os milagres? Eles não sabiam que seriam facilmente derrotados? Então por que assim mesmo atacaram?
 
O ser humano se diferencia de todo o resto da criação, pois é a única criatura em todo o universo que tem a possibilidade de mudar e melhorar as condições espirituais nas quais foi criado. Mesmo os anjos não têm esta característica, pois apesar de terem sido criados em um elevado nível espiritual, eles não pode mais crescer e melhorar em nada. Qual é a maneira de conseguir este crescimento? Prestando atenção, refletindo. Quando a pessoa reflete e presta atenção nas coisas que ocorrem à sua volta, ele pode se elevar espiritualmente a cada instante.
 
Mas se o ser humano tem este potencial de crescimento, por que não vemos todas as pessoas crescendo espiritualmente? Pois lutamos constantemente contra a apatia e a acomodação, dois terríveis obstáculos para o nosso crescimento. Pessoas apáticas não despertam e não aprendem a tomar decisões corretas nas questões mais importantes da vida. E esta é a essência espiritual de Amalek, que pode ser encontrada em todos os seres humanos: a apatia e a falta de reflexão, mesmo diante das maiores revelações de D'us. Amalek também escutou os milagres de D'us, mas por sua apatia não despertou. Além disso, eles quiseram também contaminar os outros povos com este sentimento. Por isso viajaram centenas de quilômetros para nos atacar, apenas para esfriar o fogo do povo judeu, o fogo da reflexão e do despertar, que estava começando a se espalhar por todos os povos.
 
A luta contra Amalek é uma batalha para todas as gerações. Infelizmente nos nossos dias sentimos mais do que nunca a terrível influência espiritual negativa da apatia. Acordamos, trabalhamos, comemos, dormimos. Segunda, Terça, Quarta, Quinta, Sexta. Vivemos para o próximo final de semana, para as próximas férias, para a nossa aposentadoria. E como vivemos o nosso cotidiano, os detalhes do nosso dia a dia? Como reagimos aos acontecimentos no mundo? Assistimos aos Tsunamis, terremotos, vulcões e tragédias sentados na poltrona, diante da televisão, como se estivéssemos assistindo a um filme de ficção científica, como se tudo aquilo não estivesse realmente acontecendo. Não paramos para refletir, para tentar entender a mensagem que está por trás de tudo o que ocorre. As forças da natureza são apenas uma capa que oculta a mão de D'us. Precisamos aprender a escutar as mensagens. E a única maneira é através da reflexão, prestar atenção às coisas que ocorrem no mundo e em nossas vidas. Nada é um acaso, nada segue regras naturais, pois tudo tem um motivo, qualquer manifestação física tem uma causa espiritual.
 
A grandeza do ser humano está no fato de podermos mudar nossas vidas em apenas um instante. Um momento de claridade pode mudar nossa eternidade. Como nos ensina um dos maiores líderes do nosso povo na época do Talmud, Rebi HaNassi: “Há aqueles que adquirem sua eternidade em um único instante”. Amalek tentou nos esfriar, mas podemos reacender a chama a qualquer momento.
 
Estamos no mês de Elul, o último mês do ano, a reta final antes do nosso julgamento de Rosh Hashaná. Espiritualmente são dias propícios para tomar decisões, receber sobre si responsabilidade sobre nossos atos, fazer planos para o próximo ano. Estaremos em Rosh Hashaná pedindo a D'us mais um ano de vida, mas que planos mostraremos para Ele? Por que valerá a pena D'us investir em nós por mais um ano?
 
Nunca é tarde para começar. Enquanto a vela que temos dentro de nós estiver acesa, ainda há tempo. E cada vela que se reacende, ilumina e aquece um pouquinho mais o mundo inteiro, ajudando a acabar definitivamente com o frio espiritual de Amalek.
 
“SHETICATEV VETECHATEM BESSEFER CHAIM TOVIM” (QUE SEJAMOS INSCRITOS E SELADOS NO LIVRO DA VIDA).
 
SHABAT SHALOM
 
R' Efraim Birbojm

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