FUGINDO DO COMODISMO – PARASHAT CHAIEI SARÁ

Alguns estudos biológicos demonstram que é muito positiva a capacidade de adaptação dos animais às modificações que ocorrem no ambiente, mas que algumas vezes também pode ser extremamente negativa. Por exemplo, se um sapo for jogado em um recipiente que contém água fervendo, ele salta imediatamente para fora. Ele pode até ficar um pouco queimado, mas escapa vivo. Porém, o que acontece se o mesmo sapo for colocado em um recipiente que contenha a água de sua lagoa, fresca e límpida, e aquela água for lentamente aquecida? O sapo fica estático durante todo o processo de aquecimento, não se move. Ele não reage ao gradual aumento de temperatura e morre, sem esboçar nenhum tipo de reação, quando a água chega a altas temperaturas. A mesma temperatura, que antes era quente o suficiente para que ele imediatamente saltasse para fora, desta vez nem mesmo o tira de sua apatia.

Às vezes nos comportamos como os sapos. Nos acomodamos às mudanças negativas. Aceitamos tudo com passividade. Achamos que está tudo muito bom, ou que o que esta mal vai passar sozinho, é só questão de tempo. O casamento não anda bem, o relacionamento com os filhos cada vez pior, o trabalho cada vez mais desgastante, mas preferimos ficar boiando, estáveis e apáticos, na água que se aquece a cada instante.
 
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A Parashá da semana passada, Vayerá, terminou com o último e mais difícil teste de Avraham Avinu, que ele passou com sucesso: o sacrifício de Itzchak. Avraham fez exatamente o que D'us havia lhe ordenado e, vencendo todo o sentimento de amor e misericórdia pelo seu próprio filho Itzchak, colocou-o sobre o altar e preparou a faca para fazer o sacrifício. No último momento um anjo de D'us interrompeu-o e impediu o sacrifício de ser realizado. Aquele teste, que inicialmente parecia que terminaria com muita tristeza e sofrimento, aparentemente terminou bem.
 
Porém, a Parashá desta semana, Chaiei Sara, nos ensina que o evento do sacrifício de Itzchak sim teve uma consequência dolorosa. A Parashá começa descrevendo a morte de Sara, aos 127 anos. Qual a conexão entre o sacrifício de Yitzchak e a morte de Sara? Explica Rashi, comentarista da Torá, que Sara, ao ficar sabendo que Avraham havia levado Itzchak para sacrificá-lo, não aguentou a emoção e morreu.
 
Mas desta explicação do Rashi fica uma grande pergunta. O Rashi mesmo afirma que o nível de profecia de Sara era ainda maior do que o de Avraham, como D'us explicitamente falou para Avraham: “Tudo o que Sara te disser, escute a voz dela” (Bereshit 21:12). Então como Avraham passou no teste do sacrifício de Itzchak, enquanto Sara, que era mais elevada espiritualmente do que ele, não conseguiu passar?
 
Responde o Rav Chaim Shmulevitz que houve uma grande diferença na forma como Avraham e Sara foram testados. Avraham foi sendo colocado no teste pouco a pouco, como está escrito: “Pegue seu filho, seu único filho, aquele que você ama, Itzchak, e vá para a Terra de Moriá, e lá o eleve como um sacrifício” (Bereshit 22:2). Por que D'us não disse imediatamente que se tratava de Itzchak e não de Ishmael? Por que esta aparente “enrolação”? Pois D'us não queria dar a notícia de surpresa, Ele foi preparando aos poucos o coração de Avraham. Primeiro Ele falou “pegue seu filho”, para Avraham já aceitar a ideia de que precisaria pegar um dos seus filhos. Cada pequena espera até D'us finalmente revelar que se tratava de Itzchak ia dando tempo para Avraham se acostumar com a ideia, e somente assim ele conseguiu vencer o amor por Itzchak e chegar ao nível de aceitar sacrificá-lo, de forma consciente e sem nenhuma confusão em seus pensamentos. Já Sara, ao contrário, escutou a notícia repentinamente, sem preparação nem tempo para absorver o impacto, e não aguentou a forte emoção.
 
Mas será que esta “preparação” realmente foi o que fez a diferença? Afinal, Avraham escutou de D'us que teria que sacrificar seu próprio filho. Por que ter escutado aos poucos esta notícia fez com que fosse mais fácil passar o teste? Explica o Rav Chaim Shmulevitz que D'us naturalizou na alma do ser humano a característica de se adaptar às situações difíceis, para que o ser humano pudesse resistir mesmo às piores condições de vida. Infelizmente vimos este fenômeno acontecer durante a época das terríveis atrocidades nazistas. Quando visitamos o Museu do Holocausto ou assistimos filmes e documentários sobre os crimes nazistas, sempre nos perguntamos: como houve pessoas que sobreviveram à este inferno? Como as pessoas aguentaram os sofrimentos insuportáveis aos quais passavam todos os dias, por anos, nos guetos e Campos de Concentração? Como suportaram estas condições e não morreram de desgosto?  A resposta é que a transição entre uma vida tranquila e o inferno pelo qual eles passaram ocorreu aos poucos, não foi algo repentino. Os judeus foram passando por várias fases difíceis: a perda dos direitos sociais, a perda dos direitos civis, a obrigação de viver em guetos com terríveis privações, o transporte em trens de carga, até chegar aos horrores dos Campos de Concentração. A cada fase que passavam, as pessoas iam se acostumando, e isto lhes dava força para aguentar a próxima fase. Foi somente assim que muitos conseguiram sobreviver.
 
Vimos que esta característica que D'us naturalizou em nossa alma, de se adaptar às dificuldades, de se acostumar com uma situação mais difícil, pode ser utilizada de maneira positiva, para dar a força ao ser humano de suportar e passar os piores testes com os quais nos deparamos em nossa vida. Porém, esta característica também pode ser um grande obstáculo para o nosso crescimento espiritual. Muitas vezes passamos por um momento de despertar espiritual. Pode ser por motivações externas, como algum acontecimento que nos faz buscar um sentido para a vida, ou por motivações internas, quando paramos para refletir e começamos a questionar a forma como vivemos. Mas este despertar, que no início surge como um fogo ardente, com o passar do tempo começa pouco a pouco a diminuir. Mesmo pessoas que passam por verdadeiros milagres, com o tempo se acomodam e esquecem tudo o que presenciaram. Pessoas que saíram ilesas de acidentes onde praticamente não havia chances de terem escapado com vida passam por um primeiro momento de despertar espiritual, uma vontade de se conectar à espiritualidade, de deixar de viver tão focada apenas no mundo material, mas em pouco tempo tudo volta ao normal.
 
A Torá nos traz um exemplo impressionante de como ninguém está a salvo desta acomodação espiritual. Quando nosso patriarca Yaacov morreu no Egito, seus filhos levaram seu corpo para ser enterrado em Israel, na Mearat HaMachpela, onde estavam enterrados Avraham e Itzhak. Mas quando chegaram, tiveram uma surpresa: Essav estava na porta, tentando impedir o enterro, dizendo que era ele, o primogênito, que tinha o direito de ser enterrado lá. Os filhos de Yaacov explicaram que ele havia vendido para seu irmão a primogenitura, mas Essav tentou outro argumento, e depois outro. Os filhos de Yaacov, ao invés de perceberem que aquela demora causava uma vergonha para Yaacov, cujo corpo estava lá, esperando para ser enterrado, entraram cada vez mais na discussão. O tempo foi passando e o enterro não acontecia. Até que Chushim, um dos netos de Yaacov, que era surdo, viu que o corpo de seu avô estava ali parado, em total desprezo, sem ser enterrado. Ao entender que Essav estava impedindo o enterro, Chushim pegou um pedaço de madeira e atingiu a cabeça de Essav com um golpe fatal. Somente depois disso Yaacov pôde ser dignamente enterrado. Mas será que nenhum filho de Yaacov se importou com o desprezo ao corpo do pai, somente Chushim? Isto nos ensina até onde chega a força de acomodação espiritual. Os filhos de Yaacov, ao entrarem na discussão com Essav, foram perdendo a sensibilidade ao fato do corpo de Yaacov estar sendo desprezado. Cada novo argumento os afastava um pouco mais da realidade. Somente Chushim, que era surdo, não entrou na discussão e, por isso, não perdeu a sensibilidade.
 
Este é um dos principais inimigos do nosso crescimento: o comodismo, se acostumar com a nossa condição espiritual. A força do comodismo entorpece nosso coração e nos faz perder a noção verdadeira das coisas. Nos acostumamos com a desonestidade, com a imoralidade e com a violência. Nos acostumamos a aceitar as coisas erradas como se fossem normais. Mesmo quando temos certezas na vida, se não tomamos atitudes de mudanças, com o tempo vamos perdendo a força de vontade. Temos que lutar para não cair nunca no comodismo. Como? Refletindo sempre sobre os nossos caminhos e as nossas convicções. Tentando melhorar um pouco a cada dia, em pequenos detalhes, consertar atos cotidianos simples. Com pequenos passos de crescimento, um dia olharemos para trás e sentiremos um grande orgulho de tudo o que conquistamos.
 
“A vida é uma escada rolante que desce. Se não estamos subindo, então estamos automaticamente descendo”
 

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