Gotas de óleo

Num quarto de hospital, o doente precisava de silêncio e descanso. Mas as dobradiças da porta rangiam cada vez que alguém abria e fechava a porta. O barulho incomodava o doente, e até os familiares que estavam no quarto começaram a se irritar. Cada vez que entrava ou saia um médico, um enfermeiro ou uma visita, a porta fazia um irritante barulho.
 
As reações foram as mais diversas. Um quis dar explicações técnicas do porquê a porta rangia. Outro preferiu explicar os motivos pelos quais ele achava que a culpa do barulho era do hospital. O terceiro achou que não tinha nada a ver com o problema. Depois de várias horas de incômodo, chegou alguém para visitar o doente. Ao escutar o rangido, ele colocou algumas gotas de óleo na dobradiça e a porta silenciou, tranquila e obediente.
 
A lição é simples, mas importante. Em muitas ocasiões há discussões dentro dos nossos lares, no ambiente de trabalho ou em qualquer outro ambiente social. São as dobradiças dos relacionamentos fazendo um barulho inconveniente. São problemas, conflitos e mágoas que ficaram. Na maioria dos casos nós podemos fazer a nossa parte para acabar com as discórdias, basta nos lembrar do recurso infalível de algumas gotas de compreensão, e toda a situação muda. Algumas gotas de perdão acabam de imediato com o chiado das discussões mais acaloradas. Gotas de paciência no momento oportuno podem evitar grandes dissabores. Poucas gotas de carinho penetram até nas barreiras mais sólidas e produzem efeitos duradouros. Nas relações interpessoais, algumas gotas de afeição são suficientes para lubrificar as engrenagens e evitar os ruídos da discórdia e da intolerância.
 
Dessa forma, sempre que você perceber que as dobradiças dos relacionamentos estão fazendo um barulho inconveniente, não espere que os outros venham solucionar o problema. Lembre-se que você poderá silenciar qualquer discórdia utilizando um pouco do óleo do entendimento. Não é necessário ter grandes virtudes para alcançar o sucesso nessa empreitada, basta agir com sabedoria e bom senso. Às vezes são necessárias apenas algumas gotas de silêncio para conter o ruído desagradável de uma discussão infeliz. E se você é daqueles que pensa que os pequenos gestos nada significam, lembre-se de que as grandes montanhas são constituídas de pequenos grãos de areia. 
 


Nesta semana lemos a Parashat Vayigash, que descreve o momento em que Yossef não aguentou mais esconder sua identidade e se revelou aos seus irmãos. Yossef instruiu seus irmãos a voltarem para Eretz Israel para buscarem suas famílias e seu pai, Yaacov, para que todos viessem morar no Egito e sobrevivessem à terrível fome que assolava o mundo. A Parashat ainda descreve o emocionante momento do reencontro entre Yossef e seu pai, depois de terem permanecido 22 anos afastados.
 
Quando os irmãos estavam se preparando para voltar e buscar suas famílias, Yossef deu um estranho conselho para eles: “E ele (Yossef) disse para eles: “Não se agitem no caminho” (Bereshit 45:24). O que Yossef quis dizer com estas palavras? Que tipo de conselho ele estava dando aos irmãos?
 
Rashi (França, 1040 – 1105), comentarista da Torá, traz três opiniões para explicar qual foi o conselho de Yossef. Citando o Talmud (Taanit 10b), ele ensina que percursos muito longos podem se tornar perigosos caso a pessoa não seja paciente e não tome os devidos cuidados. Por exemplo, a pessoa ansiosa pode querer viajar rápido demais ou continuar a viagem mesmo durante a noite. Yossef estava prevenindo seus irmãos que, em sua pressa de voltar para casa, eles precisavam tomar cuidado para não viajar de uma maneira que os colocasse em risco. De acordo com outra opinião, também baseada no Talmud (Taanit 10b), Yossef estava ensinando aos irmãos a não se envolverem em discussões de Halachá (Lei Judaica), para que o assunto não se tornasse tão envolvente a ponto deles errarem o caminho. E uma terceira opinião de Rashi vai de acordo com o entendimento mais simples do versículo, de que Yossef estava tentando evitar que seus irmãos entrassem em uma discussão acalorada, jogando uns nos outros a responsabilidade por sua venda, e por isso os advertiu para que não entrassem em nenhum tipo de discussão.
 
Ao refletir sobre estas três opiniões trazidas por Rashi, surge um questionamento. É entendível que depois da revelação de Yossef era importante advertir os irmãos a viajarem de uma maneira mais segura, pois a empolgação de voltar para casa com as novidades poderia fazer com que eles se comportassem de maneira descuidada. Também é compreensível que Yossef estivesse preocupado com o surgimento de uma briga entre os irmãos, pois depois de se reencontrarem com Yossef, seria natural um querer jogar a culpa no outro. Porém, o terceiro motivo, de que Yossef estava preocupado que seus irmãos poderiam se envolver em discussões de Halachá a ponto de errarem o caminho, não é facilmente entendido. Na Torá não há nenhuma proibição de se envolver com o estudo da Torá durante uma viagem. Ao contrário, a Torá nos comanda a estudarmos mesmo quando estamos viajando, como está escrito: “E falará delas quando se sentar na sua casa e quando estiver andando no caminho” (Devarim 6:7). Além disso, há um Midrash (parte da Torá Oral) que afirma que Yossef insistiu aos irmãos para que eles não deixassem de estudar Torá durante o caminho, algo que aparentemente é muito contraditório com a explicação dada pelo Talmud. Como entender esta contradição?
 
Explica o Rav Yohanan Zweig que é muito comum, por algum desentendimento, que uma pessoa acabe guardando profundo rancor em relação à outra pessoa, mas que consiga socialmente se comportar de maneira civilizada. Porém, se surgir entre elas uma nova disputa, mesmo que não tenha absolutamente nenhuma conexão com o desentendimento anterior, ela será utilizada como veículo para descarregar a raiva que estava contida. Isto pode acontecer inclusive quando a questão utilizada como veículo para descarregar a raiva for algo de natureza espiritual. Por exemplo, uma discussão acalorada entre duas pessoas em relação à Halachá (Lei Judaica) pode esconder uma disputa anterior, alguma mágoa pendente. E por se tratar de algo espiritual, a pessoa se sente à vontade de entrar em uma discussão muito mais acalorada, pois como sente que está brigando “em nome da verdade”, acredita que não tem limites.
 
Parece exagero, mais foi exatamente o que aconteceu com Cain e Hevel (Abel). O versículo que descreve o assassinato de Hevel é um pouco enigmático: “E Cain falou com o seu irmão Hevel, e enquanto eles estavam no campo, Cain se levantou contra o seu irmão Hevel e o matou” (Bereshit 4:8). Mas afinal, o que eles conversaram? E qual a relação entre esta conversa e o posterior assassinato?
 
Explicam os nossos sábios que Cain e Hevel entraram em uma profunda discussão filosófica: será que D'us tem controle sobre tudo o que ocorre no mundo ou Ele tem apenas um controle limitado? Hevel defendia a visão óbvia de que D'us controla tudo com Supervisão Particular, enquanto Cain defendia a visão equivocada de que D'us tem apenas um controle limitado. A discussão filosófica foi ficando cada vez mais acalorada até que Cain, no auge da discussão, se levantou e matou seu irmão.
 
Porém, se a conversa entre eles foi algo tão importante, uma discussão filosófica tão fundamental, por que a Torá não escreveu explicitamente o teor da conversa? Explicam os nossos sábios que Cain foi o primeiro a ter a ideia de fazer oferendas para D'us. Mas Cain não se esforçou em oferecer do melhor que tinha, e por isso sua oferenda não foi aceita por D'us. Hevel gostou da ideia de seu irmão e também fez uma oferenda para D'us, mas com o melhor do que tinha, e por isso sua oferenda foi aceita. Cain ficou profundamente decepcionado com o fato da oferenda de seu irmão ter sido aceita enquanto a sua ter sido recusada. Este rancor ficou em seu coração, e ele procurou apenas uma desculpa para poder se levantar contra seu irmão. Por isso a Torá nem mesmo registrou qual foi o assunto da discussão, pois na realidade o assunto era irrelevante, era apenas uma desculpa para Cain descarregar a sua raiva.
 
Com este conceito conseguimos entender as palavras de Yossef para os seus irmãos. Ele estava ciente de que seus irmãos haviam guardado rancor uns dos outros por causa da sua venda, mas mesmo assim eles conseguiam se comportar com respeito entre eles. Porém, Yossef teve medo que se eles entrassem em algum outro tipo de discussão, mesmo que fosse sobre algo espiritual, isto seria apenas um veículo para descarregar os rancores antigos e uma desculpa para jogar a culpa uns sobre os outros. A possibilidade disto acontecer era algo que preocupava muito Yossef, pois poderia se tornar uma discussão tão acalorada que os faria se perder no caminho, colocando suas vidas em perigo.
 
O Talmud está nos ensinando que Yossef não estava instruindo seus irmãos a não estudarem Torá no caminho, ao contrário, estava incentivando-os a estudar, mas ele os advertiu para que não fugissem do foco verdadeiro do estudo, para que não acabassem caindo na armadilha de utilizar o estudo da Torá apenas como um veículo para descarregar nos outros suas frustrações.

Deste ensinamento da Parashat aprendemos algo precioso para nossas vidas, que pode nos salvar de discussões. Muitas vezes entramos em discussões com pessoas que nos fazem questionamentos, pois queremos provar que estamos com a razão. Porém, aprendemos que nem sempre os questionamentos são para tirar dúvidas, algumas vezes são apenas uma forma de ataque, uma desculpa que a pessoa está utilizando para resolver outras mágoas. Precisamos ter a sensibilidade de perceber a diferença entre um questionamento e um ataque. Pois para acabar com um questionamento, nada como uma boa resposta. Mas para acabar com um ataque, que pode estar escondendo alguma mágoa, nada melhor que uma boa conversa. Pois não apenas as dobradiças das portas rangem, algumas vezes as pessoas também rangem, e ao invés de tentar consertar com explicações técnicas, nada como um pouco do óleo do entendimento.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm

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