“Quando o grande rabino Isser Zalman Meltzer faleceu, ele foi sepultado em um cemitério de Jerusalém chamado “Har HaMenuchot”. Naquela época havia sido aberta uma parte nova no cemitério e o Rav Isser Zalman foi um dos primeiros a ser enterrado lá. Um de seus alunos mais próximos, o Rav Shach, que anos mais tarde se tornaria o maior rabino de sua geração, expressou o desejo de ser enterrado perto do seu querido rabino. Para garantir que sua vontade seria cumprida, ele comprou um terreno perto do túmulo do Rav Isser Zalman.
Anos mais tarde um rabino chamado Itzchak Epstein faleceu. Ele era um juiz no Beit Din (Tribunal Rabínico) de Tel Aviv, e durante grande parte de sua vida também havia sido um aluno muito próximo do Rav Isser Zalman. A família, sabendo do respeito e da admiração que o rabino Itzchak sentia pelo Rav Isser Zalman, decidiu procurar um jazigo próximo a ele. Mas depois de tantos anos aquela parte do cemitério já estava lotada, não havia mais nenhum lugar disponível naquela seção. Os parentes não sabiam como agir, pois eles queria muito fazer o sepultamento naquele local.
Para a surpresa de todos, o Rav Shach ofereceu o terreno que havia comprado perto do seu querido rabino. A família do rabino Itzchak Epstein, apesar do momento de sofrimento, sentiu uma grande alegria com aquele gesto tão nobre do Rav Shach. Curioso, um dos parentes perguntou:
– Rav, eu sei o quanto é importante para você este lugar no cemitério. Por que você decidiu dá-lo a outra pessoa?
O Rav Shach então explicou:
– Há anos eu guardo um sentimento de gratidão muito grande pelo rabino Yitzchak Epstein. Quando eu cheguei em Israel, em 5701 (1941), o Rav Isser Zalman ficou preocupado em me deixar sozinho em uma terra estranha e por isso enviou o Rav Yitzchak para me buscar em Rosh Hanikrá (na fronteira norte com o Líbano) e me trazer a Jerusalém. Por todos estes anos eu estive muito agradecido por este belo ato do Rav Yitzchak, que largou tudo e veio me ajudar. Por isso eu gostaria de, ao doar meu espaço no cemitério, demonstrar o meu profundo agradecimento a ele”.
Não há limites para a Mitzvá de Hakarat Hatov (reconhecer as bondades recebidas). Quanto mais conseguirmos reconhecer a bondade que recebemos dos que estão perto de nós, mais conseguiremos reconhecer as bondades ocultas que D'us faz conosco em cada instante da vida.
A Parashá desta semana, Ki Tavô, começa com a Mitzvá de Bikurim, que era cumprida quando os fazendeiros traziam suas primícias (primeiras frutas) para o Beit-Hamikdash e as davam de presente ao Cohen (sacerdote). Alguns versículos depois a Torá enumera uma série de terríveis profecias sobre calamidades e sofrimentos que poderiam recair sobre o povo judeu caso eles não andassem nos caminhos corretos. Infelizmente vimos estas profecias se cumprindo, palavra por palavra, durante a sofrida história do povo judeu. Qual a conexão entre estes dois assuntos aparentemente tão diferentes?
Quando a Torá lista as maldições que poderiam recair sobre o povo judeu, há um versículo que diz explicitamente o motivo de tantas calamidades: “Porque vocês não serviram a D'us com alegria e bom coração quando tudo era abundante” (Devarim 28:47). E olhando para a nossa história percebemos que as épocas em que o povo judeu mais sofreu, como por exemplo durante a expulsão da Espanha e Portugal e o Holocausto, foram precedidas de épocas de muita abundância e liberdade. Tanto na Espanha e Portugal quanto na Alemanha, os judeus eram as pessoas mais ricas e influentes da sociedade. Porém, o que os judeus fizeram com tudo de bom que D'us estava mandando? Se assimilaram, abandonaram as Mitzvót e se preocuparam mais com seus bens materiais do que com sua espiritualidade. A prova disso é que muitos judeus portugueses e espanhóis preferiram se converter ao cristianismo a abandonar todos os seus bens e a honra conquistados. Também na Alemanha, anos antes do Holocausto, os judeus estavam tão assimilados que não tinham mais nenhum desejo de voltar para a sonhada terra de Israel, a terra que havia sido prometida para os nossos patriarcas. Nos Sidurim (livros de reza) alemães, a frase “No próximo ano em Jerusalém” foi substituída por “No próximo ano em Berlim”. Nossa pátria mãe não era mais Israel, era a Alemanha.
Mas é difícil entender o ser humano. Por que uma pessoa que tem abundância, ao invés de se conectar com o Criador como um gesto de agradecimento, se afasta cada vez mais Dele? O próprio “Shemá Israel”, que recitamos todos os dias, nos adverte que isto pode facilmente ocorrer se não nos cuidarmos: “E você vai comer e vai se saciar. E se cuide para que seu coração não se desvie”. Por que isso acontece?
A tendência do ser humano é negar as bondades que recebe. Em primeiro lugar para nos sentirmos menos endividados com os outros. Quando Adam Harishon (Adão) pecou, ao comer do fruto proibido, D'us lhe deu a chance do arrependimento. O que Adam falou para D'us? “A mulher que Você me deu para ficar comigo, ela me deu do fruto da árvore e eu comi” (Bereshit 3:12). Apesar de D'us ter criado para Adam uma mulher para que juntos eles pudessem chegar à perfeição, Adam negou a bondade recebida e ainda colocou a culpa de seu erro em D'us. Outro motivo de negarmos as bondades são as dificuldades do dia-a-dia, a correria e o stress, que nos fazem prestar cada vez menos atenção nas bondades que recebemos, tanto das pessoas à nossa volta quanto de D'us. E finalmente nosso egocentrismo nos faz atribuir a nós mesmos todo o nosso sucesso. Vivemos como se as nossas conquistas e riquezas viessem como consequência do nosso esforço e da nossa inteligência, e não de D'us. Mas se negar as bondades é algo tão naturalizado no ser humano, como escapar desta terrível característica?
A resposta está no começo da Parashá, na Mitzvá de Bikurim, cuja essência é nos afastar da característica de ser um “negador de bondades”. Se prestarmos atenção nesta Mitzvá, alguns detalhes nos chamam a atenção. Por exemplo, a pessoa que trazia suas frutas não apenas as entregava ao Cohen, mas tinha que fazer um longo pronunciamento, que recordava desde a ida de Yaacov ao Egito, passando pela escravidão, os milagres que D'us fez durante os 40 anos no deserto e a entrada na terra de Israel. Por que não era suficiente apenas levar as frutas para o Templo? E mesmo fosse necessário um agradecimento verbal, por que não era suficiente apenas um “muito obrigado”?
Com esta Mitzvá, D'us nos ensinou como desenvolver o nosso Hakarat Hatóv (reconhecer as bondades recebidas). Para reconhecermos o que recebemos de bom, precisamos antes de tudo refletir. Quando as pessoas agradeciam pelos primeiros frutos, percebiam muitas bondades ocultas de D'us: as chuvas na época e na quantidade certas, a ausência de pragas devastadoras, o clima propício para o desenvolvimento, etc. O agradecimento dos primeiros frutos levava em consideração até mesmo os milagres que D'us havia feito na época dos patriarcas, pois este é o agradecimento verdadeiro, quando conseguimos reconhecer todo o esforço que está envolvido na bondade que recebemos. O pronunciamento era feito diante do Cohen, mas não era para o Cohen, e sim para a própria pessoa que pronunciava, para que ela internalizasse o que estava pronunciando, para que ela deixasse de receber as bondades sem se dar conta de quanta coisa havia por trás, para que ela tivesse a humildade de saber que tudo vem de D'us.
Será que sabemos reconhecer as bondades que recebemos dos outros e de D'us? Na Amidá, a principal parte da Tefilá (reza), fazemos um agradecimento a D'us por Ele “recriar tudo” a cada instante. O que está sendo recriado? Quando um marceneiro fabrica uma mesa, ele não precisa ficar recriando a mesa a cada instante. Aparentemente D'us também criou uma vez o mundo e não precisa mais criar nada. Por que então agradecemos a D'us por “recriar tudo”? Pois o marceneiro na verdade não cria nada, ele apenas transforma a madeira já existente em uma mesa. Mas D'us, quando criou o mundo, criou a partir do nada e por isso precisa recriar a cada segundo. Se por um pequeno instante D'us deixasse de criar, tudo terminaria. É como nos filmes antigos, que uma fita com milhares de fotografias passava em alta velocidade dando a ilusão de movimento. Se em algum momento tirássemos algumas fotografias do filme, a projeção ficaria com “buracos”. Assim é a nossa vida, a cada instante D'us recria todo o universo para que tudo possa existir. Será que alguma vez já agradecemos a Ele por isso?
Assim dizemos nos Salmos: “O que eu poderei retribuir a D'us por todas as coisas boas que Ele me dá?”. D'us é perfeito, é completo, Ele não necessita de nada. Mas há uma coisa que sim podemos fazer por Ele. Há uma forma de “retribuir” para D'us: cumprindo os Seus mandamentos. O que um filho pode fazer por seu pai? Se comportar e escutar suas ordens. Pois as ordens e ensinamentos do pai são para o bem do filho, e quando o filho escuta e segue seus conselhos, dá uma imensa alegria ao pai.
Estamos a pouco menos de duas semanas de Rosh Hashaná, o dia em que todos os nossos atos passarão diante do Criador e seremos julgados. D'us, durante todo o ano, fez a Sua parte. A cada instante Ele nos deu vida, nos deu alimentos, nos deu um corpo perfeito. Agora é a nossa vez, esta é a nossa chance final de fazer a nossa parte, como um agradecimento e um reconhecimento por tudo de bom que recebemos Dele.
SHABAT SHALOM
“SHETICATEV VETECHATEM BESSEFER CHAIM TOVIM” (QUE SEJAMOS INSCRITOS E SELADOS NO LIVRO DA VIDA).
Rav Efraim Birbojm