''O paradoxo do nosso tempo é que temos edifícios mais altos, mas pavios mais curtos; estradas mais largas, mas pontos de vista mais estreitos; gastamos mais, mas temos menos; compramos mais, mas desfrutamos menos; temos casas maiores e famílias menores; mais graus acadêmicos, mas menos bom senso; mais conhecimento e menos poder de julgamento; mais medicina, mas menos saúde.
Bebemos demais, fumamos demais, gastamos demais e dirigimos rápido demais. Multiplicamos nossas posses, mas reduzimos nossos valores; adicionamos anos à extensão de nossas vidas, mas não vida à extensão dos nossos anos; já fomos à Lua procurar vida, mas não conseguimos enxergar a vida que existe na Terra; enxergamos outras galáxias, mas não vemos o mendigo que dorme na rua em que caminhamos.
Conquistamos o espaço exterior, mas não nosso espaço interior; nos preocupamos com a limpeza do ar, mas não com a poluição da nossa alma; quebramos o átomo, mas não nossos preconceitos; temos maiores rendimentos, mas menor padrão moral; as pessoas estão cada vez mais altas, mas o caráter cada vez mais baixo; almejamos a paz mundial, mas não superamos as discórdias nem dentro dos nossos lares; temos maior variedade de comidas, mas menos nutrição; temos residências mais belas, mas lares quebrados.
É um tempo no qual as fraldas e a moralidade são descartáveis; em que há muito na vitrine e nada no estoque. Um tempo em que sabemos de cor o objetivo das nossas empresas, mas não sabemos nem mesmo qual é o objetivo da nossa vida. E tudo isso ocorre pois, na nossa ânsia de controlar o mundo, acabamos esquecendo de controlar a nós mesmos”
É um tempo difícil este que nós vivemos. E é justamente nestes momentos de dificuldade e escuridão espiritual que o brilho da nossa Torá se ressalta ainda mais, ao nos ensinar que a maior das nossas conquistas é dominar os nossos próprios desejos e inclinações.
Na Parashat desta semana, Toldot, a Torá descreve o nascimento dos irmãos Yaacov e Essav. Mas apesar de serem gêmeos, quando eles cresceram tomaram rumos completamente diferentes na vida. Enquanto Yaacov se dedicou ao estudo da Torá e teve um comportamento exemplar e digno, Essav se dedicou à caça e se desviou completamente do caminho correto, chegando ao nível de cometer as piores transgressões.
Apesar de Essav ter se desviado tanto do caminho, há um versículo que descreve seu relacionamento com seu pai, Ytzchak, e que nos chama a atenção: “Ytzchak amava Essav por causa da caça que estava na sua boca, e Rivka amava Yaacov” (Bereshit 25:28). Aparentemente o versículo descreve que Ytzchak tinha uma preferência por seu filho Essav em relação ao seu filho Yaacov. Porém, como alguém tão reto e íntegro como Ytzchak pôde se enganar tanto a ponto de pensar que Essav era alguém virtuoso? Será que Ytzchak não enxergava a diferença entre a má indole de Essav e a boa índole de Yaacov?
Responde o Rav Yosef Tzvi Salant zt”l (1885 – 1981) que há dois tipos de Tzadikim (Justos): um é aquele cujos traços de caráter já são naturalmente refinados e puros, enquanto o outro é aquele cujas tendências naturais são negativas e ele precisa trabalhar muito para derrotar seu Yetzer Hará (má inclinação). Certamente o segundo tipo de Tzadik tem muito mais méritos do que o primeiro, pois alcançar o nível de retidão exigiu dele um esforço muito maior.
Ytzchak acreditava que seus dois filhos eram Tzadikim. Entretanto, ele pensava que cada um era Tzadik de um tipo diferente. Ele imaginava que Yaacov era aquele tipo de Tzadik que nasceu com inclinações naturais para ter bons traços de caráter, enquanto Essav era um exemplo de Tzadik que havia superado através de muito esforço seu Yetzer Hará. O engano de Ytzchak foi ter pensado que Essav havia dominado seus maus instintos, enquanto a verdade era justamente o contrário, isto é, seus maus instintos o haviam dominado e o levaram à sua destruição espiritual.
Mas qual foi a fonte do erro no julgamento de Ytzchak? Ele reconheceu em Essav as características de “vermelhidão” (Essav tinha todos os pelos do corpo ruivos), o que de acordo com o Talmud (Shabat 156a) é indicação de uma natureza sanguinária. O Talmud ensina que quem nasce com este tipo de influência normalmente canaliza suas energias para alguma atividade relacionada com o derramamento de sangue. Se ele utilizar suas energias de forma positiva, pode se tornar um Shochet (pessoa que faz o abate Kasher dos animais) ou um Mohel (pessoa que faz o Brit Milá), mas se utilizar suas energias de maneira negativa, poderá se tornar um assassino.
Quando Ytzchak viu que Essav havia escolhido ser caçador, o que seria comparado com a função de um Shochet, ele pensou que esta havia sido a forma escolhida por Essav para canalizar de forma positiva suas tendências violentas. Além disso, Essav usava suas habilidades de caça para cumprir a Mitzvá de “Kibud Av ve Em” (Honrar os pais), pois ele sempre servia a comida caçada ao seu pai. Desta maneira, Ytzchak acreditou que Essav havia atingido o status de Tzadik, e em um nível ainda mais alto do que Yaacov.
É possível desenvolver um pouco mais o conceito de Ytzchak ter dado preferência a Essav. Explicam os nossos sábios que cada um dos patriarcas se sobressaiu em um traço de caráter específico. Avraham se sobressaiu em “Chessed” (bondade), Ytzchak em “Guevurá” (força) e Yaacov em “Emet” (verdade). Quando Ytzchak viu que Essav também tinha inclinações para a Guevurá, achou que ele utilizaria este traço de caráter para vencer seus maus instintos. Porém, o erro de Ytzchak foi não perceber que realmente Essav tinha o traço de caráter de Guevurá, mas estava utilizando esta característica de maneira completamente equivocada.
Antes de tudo precisamos entender o que significa o conceito de “Guevurá”. O primeiro pensamento que nos vem à cabeça está relacionado com o uso da força física. Mas nos atos de Ytzchak descritos pela Torá não vemos que ele participou de sangrentas batalhas, conquistou reinados ou derrotou fortes oponentes. Então onde estava a Guevurá de Ytzchak? Sua grande força estava em sua habilidade de conquistar qualquer inclinação negativa que surgisse e de anular seus desejos e necessidades egoístas. Isto resultou em um alto nível de autodisciplina e pureza, através do qual ele conseguiu que toda sua essência se transformasse em cumprir a vontade de D'us. Ytzchak viu em Essav o potencial de também se sobressair neste traço de caráter e atingir níveis até mesmo maiores do que o seu próprio nível. Apesar de estar claro para Ytzchak que Essav era puxado por fortes inclinações negativas, ele acreditava que se Essav utilizasse sua Guevurá da maneira correta, poderia vencer suas inclinações.
Mas Essav acabou direcionando sua Guevurá para propósitos egoístas. Ao invés de usar sua enorme força para controlar a si mesmo, Essav usou para controlar os outros. Ao invés de buscar a autodisciplina, ele canalizou sua força para dominar e subjugar outras pessoas. Isto fica claro através da profissão que ele escolheu: ser um caçador, atividade que envolvia dominar poderosos animais. Mas Essav não se limitou a usar sua força apenas contra os animais, ele também direcionou suas forças contra os seres humanos e tornou-se um assassino. Ao invés de investir em seu autocontrole, ele se deixou levar por todos os seus desejos, a ponto de se tornar uma pessoa extremamente imoral.
Percebemos que estes traços negativos de Essav foram transmitidos aos seus descendentes. Os romanos, por exemplo, deram continuidade ao mau uso que Essav fez da Guevurá. Eles se tornaram uma nação empenhada em conquistar o mundo apenas com o propósito de obter poder. Além disso, eles também não se importaram em se esforçar para ter autocontrole, preferindo adotar um estilo de vida imoral. E a nossa Cultura Ocidental, que também faz parte da descendência espiritual de Essav, atribui grande importância ao uso externo da força, ao invés do seu uso interno. Não apenas o uso da força física, mas também o uso da força do dinheiro para influenciar e dominar outras pessoas. Ao invés de investir no autocontrole, atualmente o objetivo de vida das pessoas tornou-se obter o máximo de poder e prazer pessoal.
A visão da Torá sobre o uso correto da Guevurá é exatamente o oposto da forma como Essav a utilizou. A ênfase da força é em seu uso interno, na busca de autocontrole, e não no seu uso externo, como ensinam nossos sábios: “Quem é forte? Aquele que domina suas inclinações, como está escrito: “Aquele que é devagar em se irritar é melhor do que o homem forte, e aquele que domina seus desejos é melhor do que aquele que conquista uma cidade” (Pirkei Avót 4:1). Quando a Torá nos ensina que Ytzchak se sobressaiu na Guevurá, significa a Guevurá interna, o poder de controlar as suas inclinações naturais, para cumprir sempre a vontade de D'us. É esta forma de poder, e não a exercida por Essav, que nós devemos aspirar. Aquele que domina os outros ainda assim continua escravo dos seus próprios desejos, e satisfazer seus desejos nunca trará um preenchimento verdadeiro. Por outro lado, aquele que adquiriu o autocontrole é a pessoa verdadeiramente livre e, portanto, a que detêm o verdadeiro poder.
SHABAT SHALOM
Rav Efraim Birbojm