O Valor da Torá

“Certa vez um pobre bateu na porta de Shimon, um grande erudito de Torá, um homem extremamente justo e piedoso. Quando Shimon viu que não tinha nada para dar ao pobre, ficou muito triste. Em total desespero, viu na mesa da sala uma pulseira de sua esposa. Achou que era uma pulseira simples, algo de pouco valor. Sem pensar duas vezes, pegou a pulseira e deu ao pobre, que agradeceu e foi embora. 
Alguns minutos se passaram e a esposa de Shimon entrou em casa. Quando ela percebeu que a pulseira não estava na mesa, começou a procurar desesperada por toda a casa. Foi então que Shimon contou que um pobre faminto havia batido na porta e havia pedido dinheiro, mas como ele não tinha encontrado nada para dar ao pobre, acabou dando a pulseira. A mulher, não acreditando no que havia acabado de escutar, falou:
 
– Shimon, você ficou louco? Aquela pulseira valia muito dinheiro! Custou mais de R$ 500,00!
 
Quando Shimon escutou aquilo, imediatamente saiu correndo atrás do pobre, gritando. O pobre não estava muito longe quando viu Shimon correndo em sua direção, com o rosto desesperado. O pobre se assustou, achando que aquele homem havia se arrependido de sua doação e estava vindo pegar a pulseira de volta. Quase que instintivamente ele começou a correr, fugindo de Shimon. As pessoas da cidade, quando viram Shimon perseguindo o pobre aos berros, também se uniam à perseguição. Quando finalmente o pobre foi alcançado, ele gritou:
 
– Me deixem! Por que vocês estão me perseguindo? Eu não sou ladrão! Este homem me deu a pulseira, ela é minha!
 
Shimon tratou de acalmar os ânimos. Pediu desculpas a todos pelo transtorno causado. Depois, com uma voz tranquila e amigável, virou-se para o pobre e disse:
 
– Meu querido, D'us me livre querer pegar a pulseira de volta. Eu dei de coração, ela é sua. Eu estou correndo atrás de você apenas porque descobri que a pulseira é valiosa, muito mais do que eu imaginei. Portanto, quando você for vender, não peça menos do que R$ 500,00″. 

Esta é a essência de Shavuót, a Festa da entrega da Torá. Porém, mais do que nos entregar a Torá, D'us também quer que saibamos o verdadeiro valor dela, para que não a desprezemos ou a troquemos por coisas baratas.

Nesta semana começamos um novo livro da Torá, Bamidbar (literalmente “No deserto”). Neste livro são detalhados muitos acontecimentos importantes que ocorreram durante os 40 anos em que o povo judeu permaneceu no deserto, como o erro dos espiões, as constantes reclamações por água e comida e as guerras contra outros povos. A Parashá desta semana, Bamidbar, descreve a formação do povo judeu durante as viagens e a forma como acampavam, divididos em tribos, cada tribo com sua posição muito bem definida.
 
Quando refletimos sobre os 40 anos do povo judeu no deserto, algo nos chama a atenção. Foram anos de muitas dificuldades. O deserto é um local inóspito, difícil para o ser humano viver. É um local sem água, sem comida e com muitos perigos naturais. Além disso, D'us testou muitas vezes o povo judeu, fazendo-os acampar por longos períodos em locais não muito agradáveis, enquanto algumas vezes, quando chegavam a um oásis paradisíaco, ficavam apenas poucos momentos. Os judeus já haviam passado 210 anos como escravos, submetidos às maiores crueldades, com castigos físicos e psicológicos. Por que D'us não os tirou do Egito de uma maneira mais tranquila, sem tantas dificuldades?
 
A resposta está na próxima Festividade do calendário judaico, Shavuót, o dia da entrega da Torá no Monte Sinai. Na próxima 3ª feira de noite (30 de maio) começa a Festa de Shavuót e os homens do povo judeu têm o importante costume de passar a noite inteira acordados, estudando Torá. Mas a entrega da Torá não foi um evento simples, envolveu detalhes que nos ensinam lições preciosas. Por exemplo, quando Moshé fez uma “revisão” de toda a Torá, no livro de Devarim, ele trouxe um ensinamento interessante: “E disse (Moshé): “D'us veio do Sinai. Ele brilhou para eles desde Seir, tendo aparecido para eles desde o Monte Paran” (Devarim 33:2). Rashi (França, 1040 – 1105) explica que este versículo se refere ao momento em que D'us, antes de entregar a Torá ao povo judeu, também a disponibilizou às outras nações do mundo. D'us ofereceu a Torá aos descendentes de Essav, que viviam na terra de Seir. Porém, quando eles descobriram que a Torá continha o mandamento de “Não assassinarás”, eles a rejeitaram, argumentando que eles eram pessoas violentas por natureza e, portanto, não poderiam cumprir este mandamento. Algo similar aconteceu com os descendentes de Ishmael, que viviam no Monte Paran. Eles também rejeitaram a Torá ao escutar que ela continha o mandamento “Não furtarás”, argumentando que o roubo era algo que já fazia parte de sua natureza.
 
Porém, este ensinamento precisa de esclarecimentos. Em primeiro lugar, estas duas Mitzvót que os outros povos rejeitaram, “Não matarás” e “Não furtarás”, também fazem parte das “7 Mitzvót de Bnei Noach”, que são as Mitzvót que todos os povos do mundo têm obrigação de cumprir. Portanto, se eles já estavam automaticamente obrigados a cumprir estas Mitzvót, por que as utilizaram como justificativa para não receber a Torá?
 
Além disso, as Mitzvót que aparecem nas “7 Mitzvót de Bnei Noach” são aparentemente muito mais rigorosas do que as Mitzvót da Torá. Por exemplo, de acordo com a Torá, se alguém furta, sua punição é pagar o dobro do valor furtado. Já as Mitzvót de Bnei Noach preveem uma punição capital para esta mesma transgressão, um castigo muito mais duro. Outra diferença importante é que, para uma pessoa ser condenada de acordo com a Torá, é necessário que o transgressor tenha sido previamente avisado de que seu ato é passível de castigo e que duas testemunhas tenham visto a transgressão. Isto não é exigido para aplicar uma punição de acordo com as Mitzvót de Bnei Noach. Portanto, por que os outros povos rejeitaram a Torá argumentando que eles não poderiam cumprir justamente as mesmas Mitzvót que eles já estavam obrigados a cumprir, e de uma maneira muito mais rigorosa?
 
A resposta está em um interessante ensinamento do Rambam (Espanha, 1135 – Egito, 1204), na introdução dos seus comentários sobre o Pirkei Avót (Ética dos Patriarcas). Ele faz o seguinte questionamento: Qual é o maior nível espiritual no nosso serviço Divino, quando naturalmente não temos o desejo de fazer uma transgressão ou quando temos um intenso desejo e, após uma intensa luta interna, finalmente conseguimos vencer nosso Yetser Hará (má inclinação) e cumprir a vontade de D'us? O Rambam chega à conclusão de que há na Torá duas categorias de Mitzvót negativas (transgressões que devemos evitar). Há transgressões que naturalmente sentimos a obrigação de evitá-las, pois entendemos que não evitá-las é algo intrinsecamente errado, como assassinar, roubar ou cometer adultério. A segunda categoria de Mitzvót são aquelas que não teríamos intelectualmente a consciência de que são proibidas e somente evitamos porque D'us nos proibiu, como cozinhar carne com leite e vestir roupas com Shaatnez (mistura de lã com linho).
 
Em relação às Mitzvót que não teríamos consciência de que são intrinsecamente erradas, o maior nível de cumprimento é, apesar de desejar transgredi-las, conseguir se conter porque D'us nos comandou, como diz o Midrash: 'Ensina o Rav Elazar ben Azaria: “A pessoa não deve dizer “Eu me abstenho de comer porco porque não gosto”, e sim “Eu gosto de porco, é saboroso, mas eu não como apenas porque D'us me comandou a não comer”'. Já em relação às transgressões que naturalmente identificamos como sendo erradas, a Torá nos ordena a nem mesmo desejar fazê-las. A pessoa que evita fazer estes tipos de transgressão, mas no seu interior ainda deseja fazê-las, está cumprindo estas Mitzvót de maneira incompleta. O maior nível de cumprimento deste tipo de Mitzvá é a pessoa abominar estes atos errados em seu coração.
 
Explica o Rav Yohanan Zweig que a diferença entre as 613 Mitzvót da Torá e as 7 Mitzvót de Bnei Noach não é apenas quantitativa, mas também qualitativa. As 7 Mitzvót de Bnei Noach são essencialmente leis que garantem que a sociedade não se autodestruirá. Das pessoas que cumprem as Mitzvót de Bnei Noach é exigido apenas que elas façam ou deixem de fazer alguns tipos de atos, como não roubar ou não matar, mas não é exigido que elas transformem a Mitzvá em parte de suas próprias essências. Não há, nas Mitzvót de Bnei Noach, nenhuma obrigação em relação aos pensamentos e à sensibilidade. Já as Mitzvót da Torá são mais do que apenas garantias de uma sociedade harmônica e equilibrada. As Mitzvót da Torá exigem que nos transformemos em um reflexo do nosso Criador. Isto somente pode ser alcançado se incorporarmos as Mitzvót à nossa essência. Quando cumprimos o “Não furtarás”, não estamos apenas deixando de cometer um crime, é exigido de um judeu que ele abomine o ato de furtar e que internalize isso em sua própria essência.
 
As Mitzvót que os outros povos do mundo rejeitaram na entrega da Torá se enquadram na categoria das que naturalmente sentimos que são erradas. Na realidade, todas as Mitzvót de Bnei Noach estão nesta categoria. Porém, enquanto os povos cumprem estas Mitzvót como sendo Mitzvót de Bnei Noach, eles não entram na proibição de desejar transgredi-las. O que D'us estava oferecendo para os outros povos era um nível completamente diferente de cumprimento das Mitzvót, que causaria neles uma mudança qualitativa como seres humanos. Há uma enorme diferença entre ser comandado a evitar transgredir algo e ser comandado a repudiar este ato em sua essência, isto é, até mesmo em pensamentos. Foi este novo nível, o cumprimento das Mitzvót de maneira que elas nos transformem, que os outros povos rejeitaram.
 
Quando D'us nos deu a Torá, Ele não nos deu apenas mandamentos. Ele nos deu a possibilidade de nos transformarmos em pessoas melhores, de quebrarmos os nossos traços de caráter negativos e transformá-los em características positivas. Isto não é algo fácil, exige trabalho e dedicação. A saída do povo judeu do Egito não foi através de um caminho fácil, pois D'us já estava nos preparando para uma vida de desafios e dificuldades, que é o que nos leva a um crescimento. O descanso e o comodismo podem ser agradáveis ao corpo, mas não nos leva a níveis mais elevados de espiritualidade.
 
Shavuót significa receber novamente a Torá em nossas vidas. Não somente o cumprimento dos mandamentos apenas como atos no nosso cotidiano, mas como ferramentas para nos transformar em pessoas mais justas, mais honestas, mais tranquilas e mais bondosas. Em Shavuót podemos reconhecer o maravilhoso presente que D'us nos deu, de valor inestimável. E esta nova energia conquistada em Shavuót pode, e deve, ser levada para o nosso ano inteiro.

Shabat Shalom e Chag Sameach

R' Efraim Birbojm

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