Oásis de tranquilidade

“Havia uma nação que vivia em paz e harmonia. As pessoas se respeitavam e se amavam, e havia um espírito de tranquilidade pairando no ar. Porém, certo dia, a paz foi quebrada por uma ameaça que se aproximava de longe. Outra nação ameaçava a soberania e a tranquilidade daquele lugar paradisíaco. Milhares de soldados foram enviados com a missão de impedir a aproximação dos inimigos.
 
Infelizmente a guerra se estendeu por muitos e muitos anos. Neste intervalo, o bondoso rei daquela nação de paz teve um filho. O príncipe herdeiro foi crescendo e, desde pequeno, foi sendo treinado para ser um bom líder e guerreiro. Quando completou 18 anos, foi enviado para a frente de batalha para liderar seus soldados. Por seis dias na semana o príncipe permanecia comandando os soldados naquele ambiente hostil de batalha, mas sempre o rei exigia que o filho voltasse ao palácio no sétimo dia. Certa vez o príncipe questionou a conduta de seu pai. Ele não entendia porque devia voltar e interromper a guerra uma vez por semana. O rei então explicou:
 
– Filho, você nasceu no meio de uma terrível guerra. Mas eu quero que você saiba que a vida verdadeira não é essa. A vida verdadeira é de paz, tranquilidade e alegria. Por isso eu peço para que você volte uma vez por semana para a tranquilidade do palácio, para que você sinta o que é a vida verdadeira e não se esqueça”.
 
Assim também é o nosso Shabat. Por seis dias nós vamos para a “guerra” do dia-a-dia, a luta pelo sustento, com dificuldades, estresse e muita correria. Porém, esta não é a vida verdadeira. Então o Shabat nos recorda da nossa essência espiritual e da nossa conexão com D'us. Um dia por semana, no Shabat, nós voltamos à tranquilidade do “Palácio do Rei”, para não esquecermos como é a vida real.

 

A Parashá desta semana, Shelach Lechá (literalmente “Envie para você”), continua descrevendo alguns dos erros trágicos cometidos pelo povo judeu no deserto. A Parashá começa com o erro dos espiões, que falaram mal da Terra de Israel, causando com que o resto do povo perdesse sua Emuná (fé) em D'us e chorasse. Toda aquela geração que chorou recebeu um decreto Divino de não entrar em Israel.
 
Além desta transgressão coletiva, a Parashá também descreve uma transgressão feita por um indivíduo do povo judeu, como está escrito: “Quando o povo judeu estava no deserto, encontraram um homem recolhendo lenha no dia do Shabat” (Bamidbar 15:32). Este homem, apesar de ter sido advertido sobre a gravidade de seu ato, continuou recolhendo lenha. Recolher lenha espalhada é uma das 39 Melachót (trabalhos construtivos) que D'us nos proibiu fazer no Shabat, e aquele homem ignorou a proibição, sendo condenado à morte. Porém, algo nos chama a atenção no início do versículo que descreve a transgressão. Não era óbvio que o povo judeu estava no deserto quando isto aconteceu?
 
Rashi (França, 1040 – 1105) explica que pelo fato da Torá identificar o episódio como tendo ocorrido quando o povo judeu estava no deserto, algo aparentemente desnecessário, nós podemos deduzir que a transgressão ocorreu imediatamente depois deles terem entrado no deserto. E como sabemos que o povo judeu cumpriu o primeiro Shabat no dia da entrega da Torá, então Rashi conclui que esta transgressão ocorreu no segundo Shabat do povo judeu.
 
Mas por que a Torá escreveu que o povo judeu estava no deserto se o versículo se refere ao erro de um único indivíduo? Explica o Rav Eliahu zt”l (Lituânia, 1720 – 1797), mais conhecido como Gaon MiVilna, que na realidade este incidente não envolveu apenas o erro de um único indivíduo. O povo inteiro havia sido displicente no cumprimento do Shabat, e a transgressão feita em público foi apenas o reflexo desta displicência do povo todo. Apesar de ter sido o erro de um único indivíduo, é como se o povo inteiro tivesse participado.   
 
Porém, como entender esta explicação do Gaon MiVilna? O Midrash (parte da Torá Oral) nos ensina que guardar o Shabat é equivalente a guardar todas as outras Mitzvót da Torá juntas. Como aquela geração, chamada de “Geração do Conhecimento”, pessoas que haviam recém recebido a Torá diretamente de D'us no Monte Sinai, puderam ser negligentes no cumprimento do Shabat? Como pode ser que, ainda no segundo Shabat que eles cumpriram, já houve um descuido tão grande, e envolvendo o povo inteiro?

Poderíamos pensar que o desleixo no cumprimento do Shabat foi consequência desta Mitzvá ter sido imposta sobre os judeus, e que esta nova obrigação havia pesado demais para eles. Porém, de acordo com outro Midrash, é difícil utilizar este argumento, pois o Midrash afirma que enquanto os judeus ainda eram escravos no Egito e Moshé morava no palácio do Faraó, ele conseguiu convencer o Faraó a dar o dia de Shabat como um dia de descanso para o povo judeu. Com grande astúcia, Moshé argumentou ao Faraó que um dia de descanso semanal faria com que houvesse um aumento na produtividade durante o resto da semana. Isto quer dizer que, mesmo enquanto ainda estavam no Egito, os judeus já estavam há anos acostumados com a Mitzvá de Shabat. Então por que neste momento eles mudaram de atitude em relação ao cumprimento do Shabat?
 
Explica o Rav Yohanan Zweig que podemos encontrar a resposta em um fenômeno que está sendo observado neste século: há um segmento inteiro do povo judeu que, apesar de viver na Terra de Israel, está completamente desconectado do cumprimento da Torá e das Mitzvót. Isto parece estranho, pois a Torá afirma que a Terra de Israel é um lugar de santidade, onde a conexão com D'us é mais direta e onde podemos desenvolver um relacionamento de maior conexão espiritual. Então como é possível um segmento inteiro do nosso povo viver neste lugar tão sagrado e, ainda assim, estar tão afastado de D'us?
 
A explicação é que, infelizmente, existe o conceito equivocado de que o único propósito para um judeu cumprir as Mitzvót é manter nossa identidade judaica e garantir a nossa continuidade. A consequência deste equívoco é que as pessoas tendem a pensar que viver na Terra de Israel substitui a necessidade de cumprir as Mitzvót, como se viver na nossa pátria fosse suficiente para manter a nossa identidade judaica e a nossa continuidade. A própria bandeira de Israel contém um “Talit”, como se estivesse transmitindo a mensagem: “É suficiente que o Talit esteja em nossa bandeira, e não é necessário mais cumprir esta Mitzvá”.
 
A grande falha neste tipo de pensamento é o total desconhecimento das leis espirituais da Torá. As Mitzvót são o veículo através do qual nós estabelecemos e mantemos nosso relacionamento com D'us. O Midrash nos ensina que as Mitzvót foram entregues justamente para “Letzaref” o povo judeu, isto é, para unir aqueles que estão comandados com Aquele que comandou. Se não há Mitzvót, simplesmente não é criado um relacionamento com D'us. O Ramban zt”l  (Espanha, 1194 – Israel, 1270), também conhecido com Nachmânides, ressalta que, pelo fato de conseguirmos estabelecer um relacionamento mais íntimo com D'us na Terra de Israel, temos uma responsabilidade ainda maior de cumprir as Mitzvót estando lá.
 
Este foi o grande erro do povo judeu no deserto. Como eles estavam vivendo como anjos, sendo alimentados com o Man, uma comida sobrenatural, e isolados das outras nações, eles acreditaram que não precisavam mais do Shabat para se conectarem com D'us e manterem sua identidade. Além disso, como eles já tinham um relacionamento com D'us muito elevado todos os dias da semana, eles acreditaram que o Shabat não era mais necessário. Eles falharam em reconhecer que são as Mitzvót que criam este relacionamento com D'us. Esta percepção equivocada infelizmente levou o povo inteiro a ser displicente no cumprimento do Shabat, afetando o cumprimento desta Mitzvá. A consequência foi o primeiro judeu que desrespeitou o Shabat de forma pública.
 
Além de ser um Mandamento de D'us, que nos conecta a Ele e energiza nossa alma, o Shabat também ajuda a manter a nossa identidade judaica e permite a cada judeu desfrutar, uma vez por semana, de um dia de relacionamento íntimo com D'us. O Shabat é um oásis no meio das “guerras” que travamos durante a semana inteira, com preocupações, pressa e estresse. Uma vez por semana nos desconectamos do material para nos conectarmos, de forma verdadeira, ao espiritual.
 
Em hebraico, “vida” é “Chaim”. Porém, “Chaim” é uma palavra no plural, não no singular. Não existe apenas uma vida, a vida material, mas sim a combinação desta nossa vida material com a nossa vida espiritual, eterna. Quem nos sustenta no mundo material são os elementos físicos, como a comida, a água e o ar. Mas o que nos sustenta espiritualmente, e nos sustentará por toda a eternidade, são as Mitzvót que cumprimos. Quando a Torá concluiu que aquele que juntou gravetos no Shabat foi punido com pena de morte, estava dando um importante aviso para todo o povo: não existe vida verdadeira sem as Mitzvót. Quando nos desconectamos de D'us, a Fonte de toda a energia vital, nos desconectamos da nossa vida eterna. O Shabat, entre todas as Mitzvót, é um ótimo lembrete de que usufruir do mundo material é apenas algo passageiro, enquanto desenvolver o nosso lado espiritual é a nossa meta verdadeira.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm

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