“Carlos era uma pessoa simples. Teve uma infância muito pobre, mas batalhou na vida e conseguiu dar boas condições para sua família. Apesar de nunca ter estudado, conseguiu mandar seu filho para uma boa universidade fora do país. Certo dia, chegou em seu escritório um telegrama do seu filho, mas como ele não sabia ler, pediu para que um dos seus funcionários lesse. O funcionário, que havia crescido em uma casa muito abastada, leu o telegrama sem nenhuma sensibilidade, quase aos gritos:
– Pai, terminou meu dinheiro!!! Não tenho dinheiro nem mais para comer ou comprar roupas!!! Preciso de dinheiro urgente!!!
Carlos ficou muito irritado com o descaramento do filho. Jogou o telegrama sobre a mesa e decidiu que não mandaria nem mesmo um centavo ao filho. Ele que aprendesse a ser mais educado.
No dia seguinte, sua esposa passou no escritório e viu o telegrama sobre a mesa. Ela, que também tinha tido uma infância dura, com muitas privações, começou a ler e se emocionou muito:
– Pai, terminou meu dinheiro – e começou a chorar – Não tenho dinheiro nem mais para comer ou comprar roupas – Parou mais uma vez para chorar e finalizou – Preciso de dinheiro urgente…
A mãe mal conseguiu terminar de ler a carta, de tão emocionada. Carlos, ao escutar, falou:
– Já que agora ele está pedindo de maneira tão educada, com certeza vou mandar tudo o que ele precisa…”
A piada pode ser engraçada, mas a falta de sensibilidade com as necessidades do próximo não tem graça nenhuma. Temos que trabalhar muito para desenvolver nossa sensibilidade, a ponto de conseguirmos sentir de verdade o que o outro precisa.
********************************************
Na Parashá desta semana, Vaerá, após o Faraó ter se recusado a deixar o povo judeu sair em liberdade, D'us começou a demonstrar a Sua força através das terríveis pragas que devastaram completamente o Egito. Mas D'us não falava diretamente com o Faraó, e sim através de intermediários, como está escrito: “D'us falou com Moshé e Aharon e comandou a eles em relação aos Filhos de Israel e em relação ao Faraó, rei do Egito, para tirar os Filhos de Israel da terra do Egito” (Shemot 6:13). Mas o que significa este versículo? Podemos entender que D'us comandou ao Faraó que libertasse os judeus da escravidão, mas o que D'us comandou ao povo judeu em relação à sua própria libertação?
Explica o Talmud Yerushalmi (Rosh Hashaná 3:5) que o versículo está nos ensinando que os judeus, no momento de sua libertação, receberam um mandamento, a Mitzvá de “Shiloach HaEved”. Que Mitzvá é esta? Havia algumas situações em que um judeu poderia se tornar escravo de outro judeu. Por exemplo, se alguém roubava e não tinha dinheiro para devolver o roubo, ele era vendido como escravo e o dinheiro da venda era utilizado para pagar a dívida. Porém, esta escravidão era apenas temporária, pois no ano de Shmitá (ano de descanso das terras em Israel, que ocorre a cada sete anos), os proprietários dos escravos tinham a Mitzvá de libertá-los. Este conceito também é mencionado nas palavras do profeta Irmiahu: “Assim disse Hashem, D'us de Israel: Eu fiz um pacto com seus antepassados no dia em que Eu os retirei do Egito, da casa da escravidão, dizendo: 'No final de sete anos, cada pessoa deve libertar seu irmão judeu'” (Irmiahu 34:13). Estas palavras enfatizam que a Mitzvá de “Shiloach HaEved” foi entregue no momento da libertação dos judeus.
Porém, esta explicação do Talmud Yerushalmi e as palavras do profeta Irmiahu despertam questionamentos. Em primeiro lugar, a Mitzvá de “Shiloach HaEved” somente se aplicava quando estava em vigor a Mitzvá do Yovel (Jubileu), que ocorria a cada 50 anos, ao fim de sete ciclos de Shmitá. Porém, a Mitzvá de Yovel somente começou a vigorar depois que o povo judeu conquistou e dividiu a Terra de Israel entre as tribos, anos depois da morte de Moshé. Portanto, por que D'us achou necessário nos ordenar esta Mitzvá antes mesmo da entrega da Torá no Monte Sinai? Algumas Mitzvót, como o Shabat, foram entregues antes do Monte Sinai para que o povo judeu pudesse cumpri-las imediatamente, mas por que a urgência na Mitzvá de “Shiloach HaEved”, se de qualquer maneira ela só poderia ser cumprida depois?
Além disso, ensinam os nossos sábios que o decreto do primeiro exílio do povo judeu foi selado justamente pelo povo ter abandonado a Mitzvá de “Shiloach HaEved”. Entendemos que D'us se aborrece quando não cumprimos Suas Mitzvót, mas o que há de tão especial nesta Mitzvá, cujo descumprimento resultou em um castigo tão duro?
Explica o Rav Chaim Shmulevitz (Lituânia, 1902 – Israel, 1979) que antes de tudo precisamos sentir o quanto era difícil para o povo judeu cumprir a Mitzvá de “Shiloach HaEved”. Temos que imaginar como se sentia uma pessoa que havia se acostumado, durante sete anos, com o escravo que ele havia adquirido, e o quanto ele dependia do trabalho deste escravo. Por isso, quando chegava o ano de Shmitá, era um teste muito difícil para as pessoas libertarem seus escravos. Porém, por outro lado, as pessoas não podiam esquecer que o escravo não estava contente com a sua situação e desejava muito ser libertado. Ele contava os dias que faltavam para tirar de suas costas o terrível peso da escravidão. Portanto, o que significa que as pessoas deixaram de cumprir a Mitzvá de “Shiloach HaEved”? Que elas se tornaram egoístas, começaram a pensar apenas nas suas próprias necessidades, ignorando os sofrimentos e o sonho de liberdade dos escravos.
Mas se esta Mitzvá era tão difícil de ser cumprida, pelo apego que os donos tinham com seus escravos, por que D'us foi tão duro quando o povo judeu deixou de cumpri-la? Pois D'us havia nos comandado a Mitzvá de “Shiloach HaEved” justamente quando saímos do Egito, da “casa da escravidão”, no momento em que estávamos sentindo na própria pele a alegria da grande libertação. Este momento, em que saímos da escravidão para a liberdade, da escuridão para a luz, era o momento ideal para aprender e guardar para sempre a Mitzvá de libertar os escravos, mesmo que o cumprimento dela só ocorreria muitos anos depois. D'us queria aproveitar aquele sentimento, vivenciado pelo povo inteiro, para deixar para sempre a marca nos nossos corações. Ele nos ensinou que, da mesma maneira que estávamos nos sentindo eufóricos com a nossa libertação, assim também futuramente deveríamos ter a sensibilidade com os nossos escravos, que queriam muito voltar para casa, e este sentimento deveria nos ajudar a vencer a dificuldade de libertá-los. D'us foi tão rigoroso no nosso castigo pelo fato de termos sentido na pele o peso da escravidão e mesmo assim não termos nos importado com o sofrimento dos escravos. E mesmo se nós não sentimos pessoalmente, nós relembramos todos os anos, em especial no Seder de Pessach, o quanto foi pesada a nossa escravidão no Egito. Isto deveria ter aberto o coração do povo judeu em todas as gerações.
Desta Parashá aprendemos o quanto D'us exige que sejamos sensíveis com as pessoas que estão passando por dificuldades e sofrimentos. Como chegar neste nível e vencer o nosso egoísmo? Uma das Mitzvót mais importantes da Torá é “Ame ao teu próximo como a ti mesmo” (Vayikrá 19:18). O nosso sábio Hilel (Babilônia, 110 a.e.c – Israel, 10 e.c) explicou esta Mitzvá de uma maneira mais prática: “Não faça aos outros o que você não gosta que te façam”. Refletindo sobre as coisas que nos incomodam e nos causam sofrimento, desenvolveremos nossa sensibilidade com os outros. É importante sempre tentar sentir a dor do próximo, mas é ainda mais importante entender a dor dos outros quando nós já passamos pela mesma dificuldade e sentimos, na nossa própria pele, o quanto doeu.
SHABAT SHALOM
Rabino Efraim Birbojm