“Um homem muito sábio chegou aos arredores de certa aldeia e, como o sol já estava quase se pondo, deitou-se para dormir sob uma árvore. De repente, chegou correndo um habitante daquela aldeia e disse, quase sem fôlego:
– A pedra! Eu quero aquela pedra!
– Mas de que pedra você está falando? – perguntou-lhe o sábio, um pouco assustado.
– Ontem à noite eu tive um sonho, e vi que nos arredores da minha aldeia, exatamente no pôr do sol, estava um homem deitado sob uma grande árvore, e ele me dava uma pedra preciosa muito grande, que me faria rico para o resto da vida. E agora eu me lembro que o homem do meu sonho tinha exatamente o seu rosto. Me dê a pedra já!
O sábio abriu o pacote que trazia e tirou de dentro dela uma pedra. Estendeu ao homem e disse:
– É esta a pedra a qual você se refere? Encontrei-a numa trilha da floresta, alguns dias atrás. Parece ser realmente muito valiosa. Mas não vou brigar por ela, você pode levá-la.
O homem da aldeia olhou maravilhado para a pedra. Era um diamante, o maior que já tinha visto na vida. Pegou o diamante e foi embora. Porém, de noite, ele virava de um lado para o outro na cama, sem conseguir dormir. Quando o dia clareou, foi novamente ver o sábio. Despertou-o e pediu:
– Por favor, eu não quero o diamante. Eu quero que você me dê desta riqueza verdadeira, que lhe tornou possível desfazer-se de um diamante tão valioso assim com tanta facilidade…”
Quem tem claridade sobre a vida, e sobre o que vem depois da vida, sabe o que deve priorizar: não os bens materiais, e sim as aquisições espirituais.
Nesta semana recomeçamos a leitura da Torá com o primeiro livro, Bereshit, que descreve a criação do mundo e as primeiras gerações da humanidade. A Parashat desta semana, Bereishit, descreve a criação do primeiro ser humano, Adam Harishon, que logo após sua criação recebeu de D'us uma advertência: “Mas da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal não coma dela, pois no dia em que você comer dela, certamente morrerá” (Bereshit 2:17). Explica o Ramban zt”l (Nachmânides) (Espanha, 1194 – Israel, 1270) que a morte mencionada no versículo não se refere à morte imediata de Adam, e sim à perda de seu status imortal. Não apenas ele virou um ser mortal após comer do fruto proibido, mas também todos os seus descendentes se tornaram mortais.
Porém, aparentemente o castigo recebido por Adam Harishon parece ser desproporcional ao seu erro. Quando pensamos na nossa morte ou na morte de um ente querido, normalmente ficamos tristes e depressivos. Frequentemente bloqueamos este tipo de pensamento por causa dos sentimentos negativos que ele nos causa. D'us ter infligido um castigo tão duro transmite o conceito de um Criador vingativo e punitivo, bem diferente do conceito judaico de um D'us misericordioso que criou o mundo por amor e bondade. Então como entender o castigo de Adam? Será que há alguma maneira de ver a morte de uma maneira mais positiva?
Além disso, os povos do mundo demonstram um grande respeito aos mortos no momento do sepultamento. Pessoas com mais possibilidades financeiras costumam comprar caixões chiques, de madeira nobre e alta durabilidade. Isto traz um pouco de consolo para os parentes e amigos enlutados, pois é uma tentativa de retardar a decomposição do corpo do falecido. Porém, é estranho observar que a Halachá (Lei Judaica) nos ordena fazer justamente o contrário, isto é, enterrar nossos mortos em caixões que se decomponham com facilidade. E é ainda mais difícil entender o costume praticado em Israel de não utilizar caixões, sendo o corpo colocado diretamente na terra, envolto apenas por uma mortalha. Isto não é uma desonra para o corpo? Será que a Halachá não é insensível com o sentimento dos enlutados?
Outro grande questionamento surge quando observamos as palavras de um Midrash (parte da Torá Oral), que afirma que D'us já havia criado o potencial de morte antes mesmo do erro de Adam Harishon. Quando D'us terminou a criação do mundo está escrito: “E viu D'us tudo o que Ele fez, e eis que era muito bom” (Bereshit 1:31). O Midrash explica que “bom” se refere ao potencial de vida, e “muito bom” se refere ao potencial de morte. Como pode ser que a Torá se refere à vida como sendo algo “bom”, mas à morte como sendo algo “muito bom”?
Finalmente, quando a Parashá descreve a criação de Adam Harishon, está escrito: “D'us formou o homem do pó da terra” (Bereshit 2:7). Rashi (França, 1040 – 1105) explica que D'us reuniu o pó dos quatro cantos do mundo para garantir que, em qualquer lugar que o ser humano for enterrado, a terra de lá absorverá seus restos mortais. Mas o que significa esta explicação de Rashi? Aparentemente ele quis dizer que se o ser humano não tivesse sido criado a partir do pó dos quatro cantos do mundo, seu corpo poderia ser “rejeitado” pela terra após a sua morte. Mas sabemos que todas as criaturas vivas se decompõem no solo após a morte, por causa da interação do solo com a matéria orgânica, independente de terem sido criadas a partir do pó dos quatro cantos do mundo ou não. Então por que Rashi aparentemente associa o fato do ser humano ter sido criado com o pó dos quatro cantos do mundo com a sua decomposição depois da morte?
Explica o Rav Yohanan Zweig que a resposta está em um incrível ensinamento do Talmud (Sanhedrin 90b), que descreve uma conversa entre o Rabi Meir e Cleópatra, a rainha do Egito. Ela questionou o Rabi Meir se, quando chegar o momento da ressurreição dos mortos, o ser humano emergirá da terra nu ou vestido. O Rabi Meir respondeu que se até mesmo uma simples semente de trigo plantada “nua” na terra brota revestida por várias camadas de casca, assim também o ser humano certamente emergirá da terra bem vestido.
O que parece uma simples analogia do Rabi Meir na verdade nos ensina a visão judaica sobre o enterro de um falecido. O propósito do sepultamento não é descartar de forma desonrosa o corpo, ao contrário, o enterro é o início de um processo de recriação. Da mesma maneira que a semente floresce depois de ter sido enterrada, o sepultamento de um corpo reconecta o ser humano à sua fonte, permitindo que ele possa ser recriado e possa emergir da terra de uma forma aperfeiçoada, cada um de acordo com os atos praticados enquanto ele ainda estava vivo.
É sabido que nem toda semente pode ser plantada em qualquer solo, pois há solos mais e menos propícios para o desenvolvimento de uma planta. Foi por isso que D'us criou o ser humano com o pó dos quatro cantos do mundo, para garantir que o “plantio” deste corpo depois do seu enterro não seria inibido pelo solo do lugar de sepultamento. O enterro não é somente um processo de decomposição e desintegração do corpo. É um processo que permite que o corpo aperfeiçoado possa renascer e “brotar”, pronto para receber de volta sua alma no momento da ressurreição. A palavra em hebraico para túmulo é “Kever”, a mesma palavra utilizada pelo Talmud para se referir ao útero. Da mesma maneira que o útero é o local de desenvolvimento da vida, de preparação do feto para o momento de nascer, assim também o túmulo é o local de preparação e desenvolvimento do nosso corpo para a vida eterna.
Adam Harishon foi criado com seu corpo e alma perfeitos, permitindo a ele experimentar um inigualável nível de relacionamento com D'us. Mas sua transgressão o distanciou do Criador e introduziu imperfeição em seu corpo e em sua alma. Portanto, a morte não foi um ato punitivo de um D'us vingativo, ao contrário, foi um processo através do qual Adam Harishon e seus descendentes poderiam mais uma vez se reconectar ao seu Criador e remover todas as imperfeições que impediam um relacionamento completo com Ele. Permitir ao ser humano se reconectar, mesmo após o erro de Adam Harishon, foi uma bondade sem limites. Por isso D'us viu que o processo de morte era algo “muito bom”, pois permite que nossa alma e nosso corpo se reconectem a Ele.
Como muitos veem a morte como o último estágio da vida, eles se esforçam na preservação do corpo, tentando deste modo manter os últimos vestígios da existência de seu ente querido. A Halachá nos ensina justamente o contrário, pois o sepultamento é o processo através do qual nós recriamos nosso corpo, livrando-o de suas impurezas. Preservar o corpo em seu estado atual nos privaria de um dos maiores atos de bondade de D'us. Longe de ser um desrespeito com o corpo e uma falta de sensibilidade com os familiares, a Halachá traz uma forte mensagem de consolo e esperança, através da certeza de que aquele momento doloroso não é o final de nada, é apenas o começo da preparação para a nossa vida verdadeira.
Entender a morte não nos traz apenas consolo. Entender a morte nos ajuda a aproveitar melhor a vida, nos ajuda a definir o que é o principal e o que é secundário, nos ajuda a planejar melhor onde devemos colocar nossos esforços e onde devemos saber abrir mão. Pessoas brigam ou se tornam desonestas por causa de dinheiro e bens materiais, coisas que não serão levadas conosco quando nossa existência neste mundo terminar. Somente os nossos bons atos, as nossas Mitzvót e o refinamento do nosso caráter nos acompanharão para sempre e ajudarão a reconstruir o nosso corpo, aperfeiçoado, para a nossa vida verdadeira, a vida eterna.
SHABAT SHALOM
Rav Efraim Birbojm