Será que sabemos escutar? – Abrindo os ouvidos

“Fábio era uma boa pessoa, tentava melhorar em todas as áreas da vida, mas havia algo que ele não conseguia mudar: seu egoísmo. Isto atrapalhava muito seus amigos e familiares, a ponto de muitos irem se queixar com o rabino da cidade sobre o seu comportamento. Após quebrar muito a cabeça, o rabino teve uma ideia de como ajudar Fábio a mudar sem deixá-lo chateado. Ele preparou um discurso inteiro falando das vantagens de fazer bondades com o próximo e o quanto era negativo ser uma pessoa egoísta. Mudando os nomes e alguns detalhes, o rabino queria ilustrar o discurso com as próprias situações que as pessoas haviam se queixado sobre Fábio, para ver se assim ele percebia que o discurso era para ele.

Quando chegou o Shabat, a sinagoga estava lotada. O rabino procurou e reconheceu Fábio sentado em uma das primeiras fileiras. Então ele começou seu discurso cheio de energia, emocionando as pessoas. Ele citou os exemplos de problemas que o egoísmo causa, e constantemente olhava para Fábio, tentando perceber se ele esboçava algum tipo de reação. E ele ficou muito contente ao perceber que Fábio escutava suas palavras com muito interesse. Para aumentar a sua felicidade, quando ele terminou o discurso, Fábio imediatamente se levantou e caminhou em sua direção. O rabino ficou esperançoso que Fábio havia entendido o recado e o estava procurando para pedir ajuda para mudar. Mas o que Fábio disse quase fez o rabino desmaiar. Com um grande sorriso no rosto, ele falou:

– Rabino, que belas palavras você falou hoje. Que discurso inspirado, me tocou profundamente. Coitado daqueles que são egoístas. Foi uma grande pena, pois um amigo meu, que era quem realmente precisava ter escutado estas palavras, infelizmente não pôde vir hoje. Rabino, acho bom você repetir este discurso para ele, pois ele é egoísta e precisa melhorar muito…”

Enquanto não aprendermos a escutar as críticas, enquanto sempre procurarmos os defeitos nos outros, esquecendo que primeiro devemos procurar em nós mesmos, estaremos perdendo excelentes oportunidades de melhorar e crescer espiritualmente.

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Nesta semana lemos a Parashá Itró, que traz dois assuntos muito importantes. O primeiro assunto é o reencontro de Moshé Rabeinu com seu sogro Itró no meio do deserto. Mas por que Itró foi procurar Moshé? A Parashá começa com as seguintes palavras: “E escutou Itró”. Rashi (França, 1040 – 1105), comentarista da Torá, explica que Itró escutou os eventos milagrosos da abertura do Mar Vermelho e da guerra contra o povo de Amalek, e por isso decidiu unir-se ao povo judeu. O segundo assunto é a entrega da Torá no Monte Sinai, que ocorreu depois da revelação de D'us diante de todo o povo judeu.

A entrega da Torá foi um evento que mudou o curso da história da humanidade, foi o que deu sentido para a criação do ser humano. Será que este evento tão grandioso não merecia uma Parashá inteira somente para ele? Por que o reencontro de Itró com Moshé precisou ser escrito na mesma Parashá da entrega da Torá? Além disso, segundo Rashi, Itró se uniu ao povo judeu somente depois da entrega da Torá. Então por que foi importante a Torá mencionar a vinda dele antes da entrega da Torá?

Explica o Rav Zev Leff que a conexão entre os dois assuntos nos ensina uma importante preparação para o recebimento da Torá. Há dois motivos pelos quais foi importante relatar a vinda de Itró antes da entrega da Torá. Em primeiro lugar, quando está escrito na Torá “E escutou Itró”, parece que apenas ele escutou. Mas o Zohar (parte mística da Torá) afirma que todas as nações do mundo também escutaram sobre a abertura do mar e a guerra contra Amalek. Então qual foi a diferença entre Itró e o resto do mundo? Todas as pessoas escutaram o que aconteceu, mas continuaram suas vidas sem nenhum tipo de mudança ou busca pela verdade, enquanto Itró ouviu e internalizou as informações. Ele refletiu, procurou a verdade, e finalmente concluiu que deveria buscar a Torá.

Outro motivo para ensinar sobre a vinda de Itró está relacionado com a crítica que ele fez sobre o sistema que Moshé utilizava para julgar o povo. Moshé julgava sozinho o povo todo, cansando a si mesmo e as pessoas, que precisavam passar o dia esperando para serem atendidas. Itró sugeriu que Moshé não deveria ficar com todo o peso do julgamento sobre suas costas, ele deveria distribuir os julgamentos em tribunais menores, e somente os casos mais difíceis chegariam até ele. Moshé sabia que o sistema que ele utilizava era pesado para ele e para o povo, mas ele queria fazer com que as pessoas o procurassem quando houvesse alguma disputa, e assim ele aproveitaria o contato com as pessoas para ensinar a elas um pouco mais de Torá. Apesar de Itró ser um homem muito sábio, com uma grande bagagem acumulada com as buscas pela verdade que havia feito na vida, ele não chegava aos pés de Moshé. Além disso, Itró nunca havia sido exposto à sabedoria da Torá. Moshé poderia simplesmente ter escutado a sugestão de Itró e depois ter educadamente rejeitado, sem nem mesmo levá-la em consideração. Mas Moshé demonstrou sua grandeza ao escutar com atenção as palavras de Itró, que o levaram a uma reflexão mais profunda e à conclusão de que seu sogro estava certo. No final, Moshé Rabeinu acabou acatando a sugestão de Itró e mudou todo o sistema de justiça do povo judeu, cumprindo o que está escrito: “Quem é o sábio? Aquele que aprende de todas as pessoas” (Pirkei Avót 4:1).

Isto quer dizer que o motivo da Torá ter antecipado a vinda de Itró foi para nos ensinar uma das características mais importantes para que uma pessoa possa crescer espiritualmente: a capacidade de escutar o que os outros têm para dizer, principalmente se for uma crítica, algo que pode ser melhorado. Tanto Itró quanto Moshé demonstraram que seu crescimento espiritual somente foi possível pela capacidade que eles adquiriram de escutar de verdade.

Este mesmo ensinamento é repetido durante a entrega da Torá. Entre os milagres que aconteceram no Monte Sinai, um deles foi que os sentidos físicos das pessoas se alteraram, como está escrito: “E o povo inteiro viu os sons” (Shemot 20:15). Mas para que foi necessário este milagre? Explica o Rav Zev Leff que a audição não necessita de nenhuma preparação, pois os sons de todas as direções são recebidos pelo ouvido sem a necessidade de focar ou se virar para a direção de onde vem o som. Já a visão é mais seletiva, pois vemos apenas se abrimos os olhos e focamos em algum objeto ou paisagem. Quando D'us nos permitiu ver os sons, Ele estava nos ensinando uma preciosa lição: devemos escutar com o mesmo foco que utilizamos na visão. Muitos sons chegam aos nossos ouvidos, mas apenas aquele que aprende a focar sua audição consegue absorver as mensagens contidas em cada coisa que escutamos.

Uma das qualidades mais importantes para uma pessoa que quer crescer espiritualmente é saber escutar o que é dito para ela, principalmente em relação às críticas. Em geral temos a tendência de nos esquivar das críticas, atribuindo o que está sendo dito a outras pessoas. O próprio formato do ouvido nos ensina esta importante lição. A parte externa do ouvido tem o formato de um funil, e tem a função de trazer para a parte interna do ouvido os sons captados externamente. Isto nos ensina que quando escutamos uma crítica, devemos escutar como se tivesse sido dito diretamente para nós.

A Torá traz um exemplo das graves consequências de não querer escutar. Cain e Hevel (Abel) protagonizaram o primeiro assassinato da história da humanidade. Motivado pela inveja, Cain se levantou e matou seu irmão Hevel. Antes do assassinato, Cain e Hevel se encontraram no campo e conversaram, mas a Torá não conta qual foi o conteúdo da conversa. Ibn Ezra (Espanha, 1089 -1167), comentarista da Torá, explica que D'us havia dado uma bronca em Cain, como está escrito: “Se você melhorar, então você será perdoado, mas se não, o pecado estará na entrada, e sobre você estará o desejo, mas você pode controlá-lo” (Bereshit 4:7). Como a grande maioria das pessoas, ao invés de Cain escutar a bronca de D'us, ele achou que era para os outros, não para ele. Como só havia Hevel, ele entendeu então que a bronca era para Hevel, e repetiu-a para ele. Uma discussão se iniciou e terminou com o primeiro assassinato da história. Tudo porque Cain, ao invés de escutar a crítica, preferiu achar que ela era para os outros.

Temos uma tendência natural de achar que estamos sempre certos, e ficamos cegos em relação ao que não condiz com nossa opinião. Moshé, Itró e todos os outros que chegaram à grandeza espiritual certamente adquiriram a capacidade de escutar. O Midrash (parte da Torá Oral) afirma que há aqueles que escutam e perdem, e há aqueles que escutam e lucram. Escutar corretamente as coisas é a chave para o sucesso. Antes mesmo de escutarmos no Monte Sinai “E disse D'us”, a Torá nos ensinou o que significa escutar. Pois a menos que haja um ouvido que escute, mesmo as mensagens mais poderosas, vindas diretamente de D'us, acabarão se perdendo para sempre.

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