Tropeçando no próprio orgulho

“David foi ao barbeiro para cortar o cabelo, como sempre fazia todo mês. Ele começou a conversar com o barbeiro sobre vários assuntos. A conversa então tomou um rumo mais espiritual e eles começaram a falar sobre D'us. Enquanto David era uma pessoa de imensa Emuná (fé) em D'us, o barbeiro era um ateu convicto. O barbeiro disse:
 
– Eu não preciso deste seu D'us para nada. Através do meu esforço eu consigo garantir meu sustento e manter minha família e minha saúde. Além disso, eu não acredito que seu D'us realmente exista. Você só precisa sair na rua para ver que D'us não existe. Se D'us existisse, você acha que haveria tantas pessoas doentes? Haveria crianças abandonadas? Haveria dor e sofrimento? Eu não consigo imaginar um D'us que permite todas essas coisas.
 
David não quis dar imediatamente uma resposta, para evitar uma discussão mais acalorada. Quando o barbeiro terminou o corte e David se preparava para sair, passou na rua um homem com barba e cabelos longos. Ele tinha uma aparência péssima, parecia que não cortava o cabelo ou fazia a barba há um bom tempo. Então David disse ao barbeiro:
 
– Sabe de uma coisa, acho que são os barbeiros que não existem.
 
– Como assim os barbeiros não existem? – perguntou o barbeiro – Eu estou aqui e sou um barbeiro!!!
 
– Não! – afirmou David – Os barbeiros não existem, porque se existissem, não haveria pessoas com barba e cabelos tão longos como aquele homem que está andando ali na rua. Veja, que homem de aparência horrível! Se os barbeiros existissem, eles permitiriam uma pessoa andar pela rua desta maneira?

– Que argumento mais tolo – disse o barbeiro para David – é óbvio que barbeiros existem, mas há pessoas não procuram os barbeiros. Isto é uma opção delas. Se a pessoa quer ficar com a aparência desleixada como este jovem que passou na rua, isto é uma escolha dela, não tem nada a ver com a existência dos barbeiros.

– Que seus ouvidos escutem o que diz a sua boca! – respondeu David – Suas palavras são a resposta ao seu questionamento. D'us existe, mas há muitas pessoas não O procuram, por opção delas. Pessoas como você, que acham que tem tudo na vida por seu próprio esforço e mérito. E é justamente por isso que há tanta dor e sofrimento no mundo.

Neste Shabat continuamos revivendo a Festa de Pessach, na qual comemoramos a liberdade do povo judeu da terrível escravidão egípcia. E no domingo de noite (16 de Abril) novamente é Yom Tov, um dia com mais santidade, no qual nos abstemos de trabalhos construtivos. O primeiro dia de Pessach é um dia de santidade especial, pois foi neste dia que saímos do Egito, mas por que o sétimo dia também é um dia de mais santidade? Pois neste dia D'us fez o incrível milagre da abertura do Mar Vermelho. Por diversas vezes D'us ordenou ao Faraó que deixasse o povo judeu sair. Porém, em sua obstinação e orgulho, ele não escutava os avisos e ameaças. As pragas destruíram a infraestrutura do Egito, mas mesmo assim o Faraó se recusava a se curvar diante da demonstração de força de D'us. Depois que os judeus saíram do Egito, o Faraó ainda reuniu seu exército para persegui-los. O orgulho do Faraó só acabou quando D'us abriu o mar, para que os judeus passassem em terra firme, e fechou-o sobre os egípcios, afogando-os e terminando para sempre a escravidão.
 
Porém, observando o processo de salvação do povo judeu, há algo que nos chama muito a atenção. Em todos os acontecimentos, há um foco muito maior no Faraó do que no próprio povo judeu. Por exemplo, nas dez pragas, a Torá sempre descreve a reação do Faraó, mas raramente menciona o que estava acontecendo com o povo judeu. Por que a Torá colocou os “holofotes” sobre as reações do Faraó, ao invés de ressaltar as reações do povo judeu? Afinal, quem é o protagonista principal da saída do Egito, o Faraó ou o povo judeu?
 
Explica o Rav Shlomo Wolbe zt”l (Alemanha, 1914 – Israel, 2005) que a resposta está no entendimento da diferença entre as primeiras gerações da humanidade e as gerações mais recentes. Nas primeiras gerações, como a geração do dilúvio, a geração da Torre de Babel e a geração de Sdom (Sodoma), havia muitas pessoas com consciência plena da existência de D'us. Apesar disso, estas gerações intencionalmente se rebelaram contra Ele. Já nas gerações mais recentes, apesar do ateísmo ainda estar presente, não vemos movimentos organizados de rebelião contra D'us. Por que as primeiras gerações, que compreendiam a Onipotência de D'us, se rebelaram contra Ele, enquanto as gerações mais recentes não?
 
Além disso, o nível de rebeldia das primeiras gerações é assustador. Rashi (França, 1040 – 1105), ao comentar sobre o dilúvio (Bereshit 6:6), afirma que, apesar de D'us ter planejado a destruição de toda a humanidade através de um dilúvio, Ele se “consolou” pelo fato de ter criado o ser humano na terra e não nos céus, pois se o homem tivesse sido criado nos céus, ele teria convencido até mesmo os anjos a se rebelarem contra D'us. Rashi está nos ensinando até onde chegava o orgulho e a arrogância da geração do dilúvio. Mesmo sabendo da Onipotência de D'us, as pessoas daquela geração desejavam ser independentes a qualquer custo. Mesmo se o homem morasse nos céus, ainda assim ele não se subjugaria a D'us, apesar da certeza de que é Ele que controla os céus e a terra.
  
Algo semelhante podemos enxergar também na história do povo judeu. Quarenta dias depois de D'us ter se revelado ao povo inteiro e ter transmitido pessoalmente os 10 Mandamentos, os judeus fizeram o bezerro de ouro. Como pode ser que o povo judeu, após a maior revelação de D'us na história da humanidade, após ter visto D'us “face a face”, construiu um bezerro de idolatria? Se era para seguir uma divindade, qual era a diferença entre servir a D'us ou ao bezerro de ouro?
 
Responde o Rav Wolbe que é mais fácil para o ser humano servir algo que foi criado com as suas próprias mãos do que servir a D'us. As gerações passadas sabiam que foi D'us quem nos criou e que é Ele quem dita as regras. É por isso que era mais fácil servir o bezerro de ouro, que não tem nenhuma força real e não exige nada de nós, do que servir a um D'us Onipotente e que definiu regras para o mundo. Quando D'us quis destruir o povo judeu após a construção do bezerro de ouro, Ele explicou a Moshé o motivo: “Eu vi esta nação, e eis que eles são uma nação de pessoas obstinadas” (Shemot 32:9). D'us quis deixar claro que a raiz da transgressão do bezerro de ouro não era a vontade de fazer idolatria, e sim a obstinação, uma consequência do orgulho e da arrogância do ser humano.
 
Agora podemos entender a diferença entre as primeiras gerações, que reconheciam a existência de D'us e mesmo assim se rebelavam contra Ele, e as gerações mais recentes. As primeiras gerações reconheciam a grandeza de D'us e Sua Onipotência e, justamente por isso, tinham dificuldade de se subjugar a uma Força que eles sabiam ser muito maior do que sua própria força. Já as gerações mais recentes estão tão afastadas da espiritualidade que nem reconhecem mais a verdadeira grandeza de D'us. Portanto, as gerações mais recentes não sentem a necessidade de se rebelar, pois não se sentem ameaçadas pela Onipotência de D'us.
 
Este também é o motivo pelo qual a Torá colocou os holofotes sobre o Faraó e não sobre os judeus quando descreveu o processo de libertação da escravidão. Os longos e terríveis anos de escravidão quebraram os judeus, fisicamente e espiritualmente. O único apoio dos judeus para continuarem vivos no inferno egípcio era a esperada redenção, prometida desde os dias de Avraham. Quando finalmente D'us se revelou, o povo judeu aceitou sobre si prontamente e de bom grado o jugo de D'us. Portanto, durante as pragas, a Torá não precisou focar no povo judeu, pois eles não se rebelaram contra a força de D'us. Eles não tinham nenhum tipo de orgulho que bloqueasse a conexão com o Criador. Já o Faraó, ao contrário, era muito orgulhoso e preferia afirmar: “Não conheço D'us” (Shemot 5:2). Ele se vangloriava que o Nilo, uma das maiores divindades egípcias, foi criado por ele, como está escrito: “Eis que o Nilo é meu. Eu o fiz, para o meu uso e proveito” (Yechezkel 29:3). Por isso a Torá coloca o foco sobre o Faraó, para nos ensinar que as pragas foram direcionadas de forma a sistematicamente subjugá-lo, quebrando sua arrogância e mostrando a ele a grandeza de D'us.
 
Portanto, uma das principais lições que a Torá quis nos ensinar foi a terrível consequência da falta de humildade. Não importa quão grande uma pessoa pensa que é, a realidade é que ela é apenas uma criação e, por isso, deve ser submissa e humilde perante seu Criador. Podemos aprender isto por bem ou, como o Faraó, por mal, através de sofrimentos que são enviados para quebrar a arrogância daqueles que se afastaram de D'us por causa de sua própria honra. Os ateus são, acima de tudo, pessoas arrogantes, pois mesmo diante das provas mais contundentes, ainda assim preferem continuar negando a força de D'us. Um exemplo impressionante é Francis Crick, o vencedor do Prêmio Nobel de Medicina em 1953 pela descoberta da estrutura do DNA. Alguém que entendeu neste nível a complexidade e a perfeição do corpo humano deveria automaticamente entender que existe um “Desenhista” que projetou o mundo. Alguém que entende profundamente de microbiologia sabe que não existe acaso. Porém, Francis Crick preferiu explicar a criação do mundo através da “Panspermia Dirigida”, uma teoria na qual credita-se a seres de outros planetas o início da vida na Terra, quando foram “plantadas” no mundo sementes de vida geneticamente programadas para evoluir até chegar ao ser humano. Para Francis Crick, vencedor do Prêmio Nobel, é mais fácil aceitar que fomos criados por seres de outro planeta, limitados e que não exigem nada de nós, do que por um Criador Onipotente, que tem exigências de conduta moral. O problema não é a falta de inteligência, e sim a falta de vontade de enxergar. O pior cego é aquele que não quer ver.
 
Mas isto não acontece somente com os ateus. Até mesmo aqueles mais conectados com as Mitzvót sentem as consequências de não trabalhar o traço de caráter da humildade. Pessoas podem estudar Torá por horas completamente concentradas, mas quando chega o momento da Tefilá (reza) sentem uma enorme dificuldade de concentração, pois são bombardeadas com incontáveis pensamentos aleatórios. Por que isto acontece? Quando fazemos Tefilá, estamos reconhecendo que existe uma Força Superior que controla tudo. Na Tefilá pedimos, entre outras coisas, sustento, saúde e conhecimento, demonstrando que tudo o que temos na vida vem de D'us. Mas o ser humano tem a tendência de “fugir” deste reconhecimento e, por isso, mesmo de forma subconsciente, permitimos que sentimentos de rebeldia surjam em nossas cabeças durante a Tefilá. Isto é uma consequência do nosso orgulho, de esquecermos que tudo vem de D'us.
 
A humildade verdadeira é saber que é D'us que dá tudo o que precisamos. É ele que nos dá a força para trabalharmos e a inteligência para entendermos. Aqueles que acham, como o Faraó, que não precisam de D'us, são justamente aqueles que descobrem, da pior maneira possível, que não somos nada sem Ele.
 
Shabat Shalom e Pessach Kasher VeSameach

R' Efraim Birbojm

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