Utensílios nas mãos de D’us

Carlinhos era um garoto curioso. Certo dia, ao observar seu avô escrevendo em um caderno, perguntou se estava escrevendo algo sobre ele. O avô sorriu e disse ao netinho:
 
– Sim, estou escrevendo algo sobre você. Entretanto, mais importante do que as palavras que estou escrevendo é este lápis que estou usando. Espero que você seja como ele quando crescer.
 
O menino olhou para o lápis e, não vendo nada de especial, comentou com o avô que parecia um lápis igual a todos os outros que ele já tinha visto. Questionou qual era a comparação do lápis com ele. O avô deu um sorriso e explicou:
 
– Tudo depende do modo como você olha as coisas. Há cinco qualidades em um lápis que, se você conseguir tê-las, será uma pessoa de bem e em paz com o mundo – respondeu o avô.

A primeira qualidade: assim como o lápis, de vez em quando você vai ter que parar o que está escrevendo e usar um “apontador”. Isso faz com que o lápis sofra um pouco, mas no final ele se torna mais afiado. Portanto, saiba suportar as adversidades da vida, porque elas farão de você uma pessoa mais forte e melhor.

A segunda qualidade: assim como o lápis, permita que seja apagado o que está errado. Entenda que corrigir uma coisa errada que fizemos é muito importante para nos trazer de volta ao caminho certo.

A terceira qualidade: assim como no lápis, o que realmente importa não é a madeira ou sua forma exterior, mas o grafite que está dentro dele. Portanto, sempre cuide daquilo que tem dentro de você. O seu caráter será sempre mais importante do que a sua aparência.

A quarta qualidade do lápis: ele sempre deixa uma marca. Da mesma maneira, saiba que tudo o que você fizer na vida deixará traços e marcas na vida das pessoas. Portanto, procure ser consciente de cada ação, deixe um legado, e marque positivamente a vida das pessoas.
 
E, finalmente, a última e mais importante qualidade: assim como o lápis, você pode fazer coisas grandiosas. Mas nunca se esqueça de que existe uma mão que guia os passos do lápis, e que sem ela, o lápis não tem qualquer utilidade. Também em nossas vidas podemos fazer coisas grandiosas, mas sem nunca esquecer a “mão” que nos guia: D'us.

 

Nesta semana lemos a Parashat Tzav (que literalmente significa “Ordene”). Um dos assuntos da Parashat é a consagração de Aharon e seus filhos como os Cohanim (sacerdotes) que fariam os serviços do Mishkan (Templo Móvel). No processo de consagração, Moshé falou ao povo: “Isto é o que D'us ordenou a ser feito” (Vayikrá 8:5). Depois disso Moshé começou a preparar Aharon e seus filhos, auxiliando no banho deles e ajudando-os a vestir as roupas de sacerdócio.
 
Porém, tudo o que Moshé fazia era de acordo com a vontade de D'us. Então por que justamente neste momento, antes de ajudar Aharon e seus filhos a se banhar e se vestir para o sacerdócio, ele sentiu a necessidade de anunciar “isto é o que D'us ordenou a ser feito”? Explica Rashi (França, 1040 – 1105) que Moshé teve medo que as pessoas interpretassem erroneamente que ele estava fazendo aqueles atos apenas como uma forma de se autoglorificar. Por isso, para tirar qualquer suspeita, ele sentiu a necessidade de avisar ao povo que aquela não era uma decisão sua, e sim uma ordem de D'us para que ele ajudasse no banho e nas vestimentas dos Cohanim.
 
Porém, esta explicação de Rashi é difícil de ser entendida. Ajudar a dar banho e a vestir alguém não parece ser algo muito honroso, que traz prestígio para quem o faz. Então por que Moshé teve medo que as pessoas pensariam que ele estava se autoglorificando com estes atos? E a pergunta fica ainda mais difícil de acordo com o Rambam zt”l (Maimônides) (Espanha, 1135 – Egito, 1204), pois em sua obra “Mishnê Torá”, no capítulo sobre as Halachót (leis) dos reis, ele escreve que é proibido um rei servir como ajudante de uma casa de banho. Moshé, por seu papel de liderança sobre o povo judeu, tinha status de rei. Então por que D'us exigiu que Moshé, apesar de sua posição tão elevada, fizesse atos que aparentemente o degradavam?
 
O mesmo ocorreu na história de Purim. O rei Achashverosh, sentindo-se endividado com Mordechai por ele ter salvado a sua vida, não sabia como dar-lhe o pagamento devido. Ele se aconselhou com seu ministro Haman, mas sem mencionar que a recompensa era para Mordechai. Haman, que constantemente buscava honra e prestígio, pensou que o rei se referia a ele. Sugeriu então que a pessoa deveria passear pela cidade montada no cavalo do rei, vestindo as roupas do rei e com alguém importante na frente puxando o cavalo e anunciando “Assim é feito com aquele que o rei deseja honrar”. O rei, satisfeito com a sugestão, falou para Haman: “Vá imediatamente e faça para Mordechai tudo o que você me sugeriu”. O Talmud (Meguila 16a) acrescenta ainda que Haman não apenas teve que puxar o cavalo de Mordechai em público, mas também teve que fazer a barba de Mordechai e ajudá-lo no banho. Porém, como entender este ensinamento do Talmud? Mesmo que o rei Achashverosh queria honrar Mordechai, por que ele precisava rebaixar e humilhar desta maneira Haman, um de seus mais altos oficiais do reinado?
 
Responde o Rav Yohanan Zweig que ser barbeiro ou ajudante de banho de alguém que quer apenas se enfeitar e se arrumar realmente pode ser algo degradante para alguém de grande estatura. Por isso, é proibido para um rei, por causa de sua honra perante o povo, fazer este tipo de serviço. Porém, se estes atos não forem apenas por embelezamento, e sim como parte do engrandecimento de outra pessoa, que trará mais honra ao próximo, neste caso este ato não é considerado algo degradante nem mesmo para alguém de elevada estatura. Quando o rei Achashverosh pediu para Haman cuidar pessoalmente da preparação de Mordechai, não o fez com intenção de rebaixá-lo ou humilhá-lo. Ser visto como aquele que deu honra para Mordechai seria considerado para Haman também algo honroso.
 
O mesmo se aplica em relação à Moshé. Como o ato de banhar e vestir Aharon e seus filhos era algo que traria honra para eles, então Moshé também seria honrado com estes atos. Por isso ele se preocupou que as pessoas poderiam pensar que ele fez esta escolha sozinho, pela sua própria honra. Como neste caso ajudar a dar banho e se vestir era algo em honra dos Cohanim, isto também trazia honra a quem fazia. Portanto, não havia nenhuma contradição com estes atos e o status real de Moshé.
 
Daqui podemos aprender algo muito importante. Não importa o que nós façamos na vida, se fazemos pela honra de D'us, então isto também traz honra para nós. Uma das doenças que mais aflige a humanidade atualmente é a depressão. As pessoas sentem que não tem nenhum valor, pois não são atores de sucesso, presidentes de multinacionais ou jogadores de futebol famosos. As pessoas se sentem desvalorizadas, sentem que suas atividades cotidianas são medíocres. Isto é um grande erro, pois mesmo as atividades que poderiam ser até vistas como degradantes, quando são feitam em honra de D'us, se transformam em trabalhos honrosos. Aprendemos isto do primeiro serviço matinal que o Cohen Gadol fazia no Mishkan: o “Trumat HaDeshen”, que consistia em retirar as cinzas do “Mizbeach” (altar de sacrifícios) que haviam sobrado do dia anterior. Apesar deste serviço de “limpeza” parecer algo baixo para alguém da estatura do Cohen Gadol, na prática não havia nenhuma degradação em fazer este tipo de serviço, pois como era feito em honra de D'us, isto era uma grande fonte de honra para o Cohen Gadol.
 
O contrário também é válido. Não importa o quanto uma pessoa possa ter um trabalho honroso, se ele faz as coisas pela sua própria honra e não pela honra de D'us, então este trabalho não tem valor verdadeiro. Aprendemos isso ao nos aprofundarmos nos versículos da Parashat que descrevem a preparação dos Cohanim para servirem no Mishkan. A Torá descreve que Moshé primeiro imergiu Aharon e seus filhos na Mikve, depois Moshé vestiu Aharon, o Cohen Gadol, com suas roupas sacerdotais, consagrou o Mishkan e todos os seus utensílios, e somente depois Moshé vestiu os filhos de Aharon. Aparentemente os filhos de Aharon ficaram esperando, sem roupa, até que Moshé completasse a consagração do Mishkan. Por que Moshé não os vestiu antes de consagrar o Mishkan?
 
A mesma pergunta surge quando observamos, na obra do Rambam, que as leis referentes aos Cohanim aparecem na seção “Klei Mikdash” (Utensílios do Santuário). Por que o Rambam achou apropriado ensinar as leis do sacerdócio junto com as leis dos utensílios do Mishkan, como se os Cohanim estivessem “à sombra” dos utensílios, ao invés de dedicar um capítulo especial somente às leis do sacerdócio? O Mishkan tinha uma importância maior do que os Cohanim?
 
A genialidade Rambam em seu livro de Halachót não está apenas no conteúdo, mas também na forma de classificação e codificação das leis. Ao incluir as leis de sacerdócio no meio das leis dos utensílios do Mishkan, o Rambam está nos ensinando que os Cohanim existiam em função do Mishkan, e eram, portanto, semelhantes aos utensílios no Mishkan. Foi por isso que, antes de vestir a roupa dos Cohanim, Moshé terminou a consagração do Mishkan, pois sem o Mishkan estar pronto e consagrado, o serviço dos Cohanim também não tinha nenhum sentido e valor. Portanto, a Torá está resaltando que a importância de um Cohen é em função do seu serviço Divino, e não em função de si mesmo, e por isso ele não deve sentir honra e orgulho pelo seu trabalho.
 
Devemos sentir alegria com o que fazemos na vida. Ao invés de invejar aquele presidente ou aquele ator, devemos saber que cada um tem um papel fundamental para o bom funcionamento do mundo. O que seria do mundo se não houvesse as profissões menos prestigiadas? Por exemplo, como o mundo poderia funcionar sem lixeiros? Portanto, o mais importante é fazermos nossas atividades com a intenção de contribuir para a humanidade, e em honra de D'us. Pois mesmo o mais simples lixeiro, que faz suas atividades de maneira humilde e honesta, é muito mais honroso do que um presidente desonesto, egoísta e orgulhoso.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm

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